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Passaram 30 anos desde que dez artistas (oito homens e duas mulheres) da comunidade de Beijing East Village decidiram encenar uma performance de grande escala, colocando o corpo humano no centro da mudança do meio natural. Depois de se pesarem, empilharam-se nus – os mais leves por cima – no cume da montanha de Miaofeng, nos arredores de Pequim, fazendo-a crescer um metro em altura. "Trata-se de mudar o estado natural das coisas, da ideia de possibilidades", terá explicado o performer Zhang Huan. Sem devaneios, a obra intitulou-se "To Add One Meter to an Anonymous Mountain" (adicionar um metro a uma montanha anónima, na tradução literal do inglês) e foi parar à Bienal de Veneza em 1999. O seu registo chega a Lisboa a 13 de Maio e vai estar até Junho na galeria Ochre.
Performance primeiro, fotografia depois (o debate sobre se a autoria da obra é de quem fotografou ou dos performers manteve-se aceso durante todos estes anos), a exposição é especial não só pelo que retrata – é o testemunho de resistência de uma comunidade utópica criada numa China em desenvolvimento económico fervoroso e com grandes desigualdades sociais – mas também porque será, muito provavelmente, a primeira vez que o mundo poderá ver, na íntegra, toda a sequência desta acção do colectivo de East Village.

Sob a curadoria de João Miguel Barros, compõe-se, assim, de 18 fotografias que mostram a sequência da performance (da autoria de Bagena); das três fotografias originais (tiradas por Lu Nan, Bagena e Robyn Beck, da AFP) que são o resultado final do acto artístico (e que andam entre leilões, museus e galerias de todo o mundo); e de 22 fotografias de RongRong, um dos grandes fotógrafos da China contemporânea, sobre o quotidiano na comunidade utópica de East Village, fundada na pobre e precária aldeia de Dashanzhuang e desmantelada pelas autoridades poucos anos depois. Para lá das imagens, obtidas após dois anos de investigação, muitas viagens e conversas do curador e advogado que vive entre Lisboa e Macau com nove dos dez artistas (o décimo não quis participar no processo), o Ochre Space vai exibir, ainda, o vídeo original, de oito minutos, da performance.
A história infinita da imagem
Muito mais do que mostrar uma colecção de imagens, a exposição "To Add One Meter to an Anonymous Mountain e RongRong's East Village" vem "lançar uma nova luz sobre a comunidade artística do East Village de Pequim e sobre os debates que se seguiram à ascensão da performance ao reconhecimento global após a Bienal de Veneza de 1999", pode ler-se na página da galeria. Quem eram e o que procuravam aquelas pessoas voltadas à pobreza em nome da liberdade artística? De quem eram aquelas imagens? Como passaram a valer milhões? Os enigmas em torno de East Village são vários e "a história, ainda hoje, não está acabada", declara à Time Out João Miguel Barros, que um dia, de passagem por um bairro de Pequim, ficou marcado por uma imagem impressa numa lona de 10 corpos deitados no topo de uma montanha. "É uma imagem com uma grande força, enigmática, que eu nunca consegui esquecer. Esse foi o momento zero", explica.
Com o tempo, o curador percebeu que o autor da imagem era Lu Nan, célebre fotógrafo da agência Magnum, por quem tinha uma "fixação" e cuja obra havia trazido, em 2017, para uma exposição no Museu Berardo, em Lisboa. A história aprofundou-se e o advogado partiu em trabalho de campo. Lu Nan, porém, que havia disparado o botão do obturador na montanha de Miaofeng, nunca quis falar sobre o assunto, era como se não fosse nada com ele. "Achei estranho, mas, à boa maneira chinesa, respeitei aquele silêncio. Percebi que havia ali muitas nuvens negras, muito por causa da questão da autoria." Egos e lobbies vieram ao de cima, de facto, assim que a imagem se tornou famosa, na sequência da Bienal de Veneza de 1999. Mas Lu Nan, ao que parece, já o adivinhava. Ainda em 1995, o fotógrafo terá distribuído um negativo por cada um dos performers, oferecendo-lhes os direitos de cada imagem e, "de forma algo profética", ter-lhes-á dito: “Irão ser famosos com esta performance e irão ficar ricos. Eu não tenho nada a ver com isto! O negativo da fotografia é vosso!”.

Sobre a questão dos direitos, distintas foram as abordagens de várias instituições culturais do mundo. Em algumas exposições, a autoria foi atribuída aos fotógrafos, enquanto noutras os nomes dos dez performers surgiam em lista, como proprietários dos direitos. "Não tenho dúvidas quanto a esse ponto. Há um direito moral que deve ser respeitado e, para mim, ele é de quem tirou as fotografias", afirma o curador português. E é desta forma que as imagens serão identificadas na exposição que inaugura a 13 de Maio, uma exposição, "sem sombra de dúvidas, de fotografia".
Um meteoro chamado East Village
O contacto, ao longo de dois anos, com teóricos e artistas, pedindo-lhes as imagens, os testemunhos e a gravação da performance, permitiu a João Miguel Barros montar a exposição que agora inaugura em Lisboa, mas, acima disso, desenvolver possivelmente a mais ampla e detalhada investigação sobre a comunidade vanguardista que se "exilou" nos subúrbios de Pequim, entre outros pobres e migrantes, de 1992 a 1999, fugindo constantemente à opressão do regime sem nunca deixar de o desafiar. Desse trabalho irá sair um livro, prevendo-se o seu lançamento para este Verão. "Infelizmente, não consegui terminar a tempo da inauguração da exposição", lamenta o autor.

Entre as histórias da Beijing East Village estarão no documento, seguramente, contributos da fotografia e escrita de RongRong (a publicação RongRong’s Diary: Beijing East Village também está disponível para consulta no Ochre Space), que retratam o quotidiano da comunidade entre os anos de 1993 e 1998. Também não faltarão referências ao trabalho revolucionário de Ma Liuming, que já naquela década abordava, por exemplo, as questões de género, expondo uma androginia visual e desafiando convenções, como quando caminhou nu(a) ao longo da Grande Muralha da China ou quando simplesmente cozinhava, mais uma vez nu, num pátio, sendo detido por isso. Falar-se-á, ainda, de Cang Xin, que lambia coisas várias para viver – de passeios a paredes – e de Zhang Huan, considerado um dos líderes da comunidade, que abanava o sistema recorrendo ao masoquismo, o mesmo que usou para montar um fogão e ali fritar o próprio cabelo, como conta o britânico The Guardian.
Não menos importante para o livro é a quebra do silêncio de 30 anos do fotógrafo da Magnum, Lu Nan, que "escreveu um depoimento exclusivo para o projecto". Somam-se, ainda, os contributos de curadores e académicos da China e de outros países, do "maior coleccionador do mundo de arte chinesa" e de "um antigo galerista americano", detalha João Miguel Barros.
Ainda a servir de enquadramento, para o dia 31 de Maio, às 16.00, está agendada no Ochre Space uma conversa com Filipe Figueiredo, Cláudia Ribeiro e João Miguel Barros sobre a performance e a cena cultural chinesa nos anos de 1990. Para finalizar, será lançada uma edição limitada de coleccionador (apenas oito cópias autografadas), com versões a cores e a preto e branco da fotografia final da performance (a imagem mais conhecida) de 1995. A edição resulta de uma parceria com o artista Cang Xin, um dos dez que deu corpo à montanha de Miaofeng.
Em entrevista à Time Out em Dezembro, o curador João Miguel Barros, que vive entre Lisboa e Macau, explicava a sua “urgência em mostrar os grandes mestres da fotografia chinesa e japonesa em Portugal”. Na galeria Ochre, começou a fazê-lo em 2024 e – podemos ficar descansados – "programação para três ou quatro anos só com mestres chineses e japoneses", a um ritmo de três ou quatro por ano.
Rua da Bica do Marquês, 31 A, R/C (Ajuda). 14 Mai-21 Jun, Qua-Sáb 15:00-18:30 (inauguração a 13 Mai, 18.30). Entrada livre
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