A Time Out na sua caixa de entrada

Procurar
Nuno Nabais, nos 15 anos da Fábrica do Braço de Prata
Ricardo LopesNuno Nabais, nos 15 anos da Fábrica do Braço de Prata

"É um perigo ser legal", mas a Fábrica do Braço de Prata está disposta a tentar

A Câmara de Lisboa quer resolver a longa história de ilegalidade do centro cultural de Marvila. Um acordo de cedência estará em cima da mesa. Mas primeiro é preciso fazer obras.

Rute Barbedo
Escrito por
Rute Barbedo
Publicidade

O edifício é da Câmara Municipal de Lisboa (CML), mas a história da Fábrica do Braço de Prata (FBP), centro cultural onde proliferam o jazz, os livros, as conversas, as festas e a filosofia, vai além da propriedade. Nuno Nabais, o filósofo que engenhou uma fábrica de cultura no lugar onde se produziram munições, instalou-se ao abrigo de um contrato de comodato neste perímetro de Marvila em 2007. E ali ficou, naquele espaço “meio aciganado”, como lhe chamam alguns dos vizinhos (diz Nabais) que apresentam queixas sistemáticas pelo ruído da Fábrica, enquanto o luxo e a moda crescem à volta.

Quando a FBP passou para as mãos da autarquia, em 2016, o contrato de comodato caiu, mas o projecto manteve-se. As tentativas de regularizar (leia-se legalizar) a situação foram várias, ao longo dos anos. No entanto, nunca tiveram resultados. Na prática, a Fábrica do Braço de Prata é hoje uma casa ocupada, com condições de segurança dúbias e muitos “fantasmas”, como as dívidas de electricidade, a inexistência de licenças e seguros ou as multas que, somadas, ascendem a dezenas de milhares de euros. Nesta passagem entre os pingos da lei, o histórico e o contributo da FBP são inegáveis para Lisboa. Formaram-se ali músicos, peças de teatro, espaços de liberdade. “Acho que, durante estes anos, todos os podres jogaram a nosso favor”, considera Nuno Nabais, à mesa do restaurante a que chamou Deleuze, o filósofo que defendia a ideia de diferença na repetição.

É agora que a Fábrica se legaliza? O actual executivo acredita que sim. Em Janeiro, numa audição da Assembleia Municipal, o vereador da Cultura, Diogo Moura, vincou a sua posição sobre o assunto: A nossa prioridade é tentar regularizar as condições em que está aquele espaço. Se for possível, à entidade que lá está. Se não for, obviamente terá de ser como equipamento cultural e, portanto, a outras entidades que assim o entendam. Portanto, com ou sem Nuno Nabais. O dono da empresa unipessoal que gere a Fábrica admite à Time Out que recebeu a afirmação com surpresa. São “declarações infelizes” e fora da rota de negociação trilhada pelos dois lados, considera. “A última reunião [com a CML] foi há um mês [em Março], para acertarmos o articulado no acordo, que já está escrito. Mas, desde o início, ele [Diogo Moura] declarou estar empenhado em perpetuar a experiência e o contributo que a Fábrica tem dado à cidade, querendo resolver os problemas formais.”

Fábrica do Braço de Prata
Ricardo LopesFábrica do Braço de Prata

Na mesma reunião da Assembleia Municipal, vincou-se que regularizar a situação da FBP implicaria o pagamento de uma renda, cujo valor teria como base o preço por metro quadrado da zona, com os respectivos descontos previstos na tabela de taxas municipais (de que beneficiam várias entidades com fins culturais fixadas em Lisboa). No mandato anterior da CML, chegou a falar-se de uma renda próxima dos 12 mil euros mensais. Mas também neste aspecto adivinham-se alterações. Segundo Nabais, o que está agora em cima da mesa é um acordo de cedência do espaço. Numa das últimas reuniões com a autarquia, “informaram que, como o edifício é camarário e de utilização pública, não podem arrendar. A solução seria a da cedência do espaço, que não implicaria qualquer contrapartida financeira. Isto por dez anos, renováveis, até ao limite de 50 anos”, expõe o responsável pela FBP. 

É fazer as contas

Antes de qualquer contrato, no entanto, há três condições prévias a cumprir por parte da FBP: a remodelação completa dos sistemas eléctrico, de canalização e de esgotos; a instalação de um sistema de detecção de fumo e incêndio (que actualmente não existe); e o respeito por um novo horário de funcionamento (até às 02.00 às sextas e sábados e até à meia-noite às quartas e quintas). Ao mesmo tempo, a Fábrica deveria reduzir a sua área de acção até ao limite sul da tenda para eventos colocada no exterior (para lá da tenda, onde chegou a funcionar, até Agosto, um parque de autocaravanas sem alvará que foi uma grande fonte de rendimento da Fábrica, a gestão seria da Câmara). Segundo Nabais, durante as negociações, a CML mencionou, também, a reabilitação das fachadas. “Num bairro que está a ressuscitar para empreendimentos de luxo e turismo, é uma vergonha manter esta fachada assim. A Câmara também acha, mas diz que temos de ser nós a arcar com as despesas”, relata o gestor da FBP, sem concordar. “Eles é que são os senhorios.” 

Falta, ainda, regularizar a dívida para com a empresa que gere a rede de distribuição de electricidade em Lisboa, a E-Redes. “Dizem que temos uma dívida de 200 mil euros”, conta Nuno Nabais, que incorre numa pena de três a oito anos de prisão por “estar a usufruir de um bem sem pagar”. Juntamente com o advogado, Ricardo Sá Fernandes, o professor de Filosofia tenta encontrar uma forma faseada de pagar o montante e de regularizar a situação, conforme também exigiu a CML.

Contactada pela Time Out, a Câmara afirmou apenas que está “a aferir as várias possibilidades de utilização do espaço com o actual ocupante”, não mencionando quaisquer desenvolvimentos ou detalhes da negociação.

Das queixas de ruído ao “orgulhosamente ilegal”

Apesar de falado, o carácter ilegal da FBP andou anos na penumbra. (Quem se preocupa com a marginalidade se tudo parece funcionar?) Continuaram as conversas e as quintas de jazz, circularam as exposições, os moscow mule ao balcão, as cervejas no barco-bar, o bacalhau espiritual nas mesas, os livros. (Uma livraria não funciona sem um bar ou não são as exposições mas os jantares que pagam as contas são frases que fomos ouvindo, ao longo dos anos, de Nuno Nabais.) Até que moradores dos apartamentos de luxo do Prata Riverside Village começaram a queixar-se de ruído excessivo. “São só duas pessoas, mas as queixas são sistemáticas”, segundo Nuno Nabais. “Já insonorizámos a sala lá de cima, que dá para aquele lado [o do complexo desenhado por Renzo Piano], e suspendemos os concertos na tenda, que é o nosso melhor palco”, conta o fundador. Nas redes sociais, correm vídeos a retratar a movimentação e o barulho da Fábrica e foi esse lado que levou à realização de uma reportagem, em Março de 2023, pela CNN, em que Nabais deixou cair a provocação, declarando a Fábrica “orgulhosamente ilegal”, como, aliás, já havia dito em entrevista à Time Out. “A opinião pública ficou exaltada com a nossa história, coragem e resistência. Mas a reportagem obrigou a Câmara de Lisboa a tomar uma posição”, considera o professor de Filosofia.

Fábrica do Braço de Prata
Ricardo LopesFábrica do Braço de Prata

Por outro lado, durante anos, a Fábrica tem sido um espaço desejado pelo ímpeto imobiliário, numa Marvila que cresce em preço e quantidade (além do Prata Riverside Village, um pouco mais a Este, a Herdade da Matinha, também sob a alçada da Vic Properties e onde se realizou o Festival Iminente, aguarda um dos maiores projectos imobiliários do país, de 2000 casas). “Têm surgido dezenas de propostas multimilionárias, porque ouviram dizer que a Fábrica poderia sair daqui”, reconhece Nabais, acrescentando estar “convencido” de que as queixas de ruído de que o espaço é alvo fazem parte de “uma estratégia da Vic Properties para destruir a Fábrica como lugar alternativo, um lugar meio aciganado, como dizem eles, que compromete a valorização destes apartamentos”.

'O último dos moicanos'

A Câmara fala em várias tentativas de chegar a um acordo com a FBP nos últimos anos. Mas quer Nuno Nabais, um entusiasta do PREC e da liberdade, ficar sob o arco de um organismo público? “Sinto-me o último dos moicanos”, admite o filósofo, que se mudou durante a pandemia para a Fábrica, passando a ser não apenas seu ideólogo e dinamizador, como também morador, “porteiro e vigilante”. Di-lo porque acredita que a Fábrica do Braço de Prata é um "dos últimos vestígios de liberdade" em Lisboa, cidade gentrificada, ele que viveu o 25 de Abril aos 17 anos. "Não me esqueci desse espírito, até hoje."

Nuno Nabais
Ricardo LopesNuno Nabais

Quando, durante o mandato de Fernando Medina, o pelouro do Património tentou legalizar a FBP junto de Nabais, o mesmo reconhece ter havido um “desleixo” da sua parte, mas também receio. “A partir do momento em que a Câmara fizesse o contrato de arrendamento comigo, poderia dar-se ao direito de encerrar o edifício para fazer obras, como aconteceu com A Capital [no Bairro Alto], quando lá estavam os Artistas Unidos. E eu comecei a pensar: é um perigo passar a ser legal. Se vêm cá fazer obras, fecha-se a Fábrica por dois anos e as pessoas esquecem-se dela.”

Em 2020, um conjunto de inspectores de várias especialidades, “mais de 20 pessoas”, esteve “um dia inteiro” na Fábrica, “a ver o edifício”, as condições de segurança, de salubridade e de funcionamento geral. “Saíram com um ar circunspecto, dizendo que a situação era terrível.” Nuno Nabais sabia.

A pergunta que falta é se a Fábrica terá meios para suportar as obras, sendo este “um espaço sem fins lucrativos mas também sem lucros”, como diz Nabais. O fundador responde com silêncio, mas explana a dificuldade em avançar com os trabalhos na condição de ilegal. Assinar um contrato de obra com uma entidade que não tem direito de propriedade ou exploração do espaço? “Aí entramos num ciclo vicioso”, refere o filósofo, relatando que, após diversas tentativas de obter um orçamento, conseguiu o primeiro. “Tive de pagar 4000 euros só para me darem um orçamento para a parte eléctrica. Como estou ilegal, acham que o risco de não pagar é maior... O valor foi de 120 mil euros.” Falta o resto. Mas, para haver acordo, tem de haver obras primeiro, lembra Nuno Nabais, acrescentando: Estou convencido da boa-fé do vereador da Cultura. Este é um lugar que faz parte da paisagem da vida cultural de Lisboa. Acho que vamos resolver isto.

Siga o novo canal da Time Out Lisboa no Whatsapp

+ Ai Weiwei inaugura nova exposição em Lisboa

Últimas notícias

    Publicidade