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Fábrica do Braço de Prata
Fotografia: Ricardo LopesNuno Nabais

Fábrica Braço de Prata celebra 15 anos e reforça as suas várias “dimensões”

A Fábrica Braço de Prata, em Lisboa, celebra o aniversário com nova força. Falámos com o filósofo Nuno Nabais, o “dono”, que revela um espaço a quatro dimensões.

Renata Lima Lobo
Escrito por
Renata Lima Lobo
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É um “enclave de resistência”. Nuno Nabais descrevia assim a Fábrica Braço de Prata (FBP) à Time Out, no início de 2020, ali pouco tempo antes do primeiro confinamento. Na altura, a nossa visita tinha como assunto a saída de alguns negócios da Marvila ribeirinha, na sequência da pressão imobiliária. Dois anos volvidos, voltamos embalados pelo 15.º aniversário deste espaço aberto à experimentação e pelo reforço da programação cultural.

Ao entrarmos pelo portão que dá acesso ao exterior da antiga fábrica de armamento, deparamo-nos com um cenário pouco usual em Lisboa: um parque de autocaravanas. Tem sido a bóia de salvação da FBP. Ao longo destes dois anos, passaram por aqui cerca de mil autocaravanas, que vão compensando o défice de espectáculos e público causado pela pandemia. Agora que parece haver luz ao fundo do túnel, Nuno Nabais voltou a arregaçar as mangas para pensar no futuro. E é a pensar que um filósofo como Nabais encontra a sua praia, neste caso através de um edifício que estava abandonado e vandalizado e que ele próprio resgatou do esquecimento em 2007.

Fazendo uma espécie de resumo da matéria dada, o edifício pertenceu à Fábrica do Material de Guerra até 1990 e quando, há 15 anos, o filósofo imaginou aqui instalar um pólo cultural, a propriedade estava nas mãos da empresa Obriverca – a mesma que detinha os terrenos para o vizinho empreendimento de luxo Prata Riverside Village. Com o proprietário, o filósofo fez um contrato de comodato, comprometendo-se a fazer todas as reparações sem pagar renda. Até hoje pouco mudou, excepto o passar de mãos do terreno para a Vic Properties. Entretanto, havia um acordo em como os terrenos da FBP passariam para a Câmara Municipal de Lisboa (CML) quando as licenças de habitação dos apartamentos estivessem atribuídas, mas até agora nada.

“Continuamos orgulhosamente ilegais, mas pagamos os impostos todos”, diz o filósofo e também mecenas de muitos artistas que por aqui têm passado nos últimos 15 anos. “Quando foram os dez anos de vida da Fábrica, estive a fazer contas ao dinheiro que cobrámos na bilheteira e passámos para os bolsos dos músicos: íamos em um milhão e 600 mil euros. Passados cinco anos, devemos ir nos dois milhões. Fazemos questão que o trabalho seja pago, mas eu como dono da fábrica tenho a obrigação de não pagar pelos meus cursos”, adianta, referindo-se a um dos braços da programação que assegura em nome próprio.

Fábrica Braço de Prata
Fotografia: Ricardo Lopes

Fábrica a quatro dimensões

A programação da FBP sempre foi conhecida por apoiar as mais variadas formas de expressão artística, programação essa que tem vindo a ser repensada e reforçada. E, como explica Nuno Nabais, funciona em quatro dimensões: a música, as artes plásticas, a literatura e a “dimensão dionisíaca”, que é como quem diz os bares, o restaurante ou as festas. O que se traduz numa ocupação quase permanente da FBP.

Relativamente ao braço musical, este pólo cultural é um “lugar raro de encontro entre bandas”, criando “cruzamentos inesperados entre os músicos”, diz Nabais. Mas, enquanto a curadoria musical é caso sério, a porta está aberta a todos os que aqui queiram ensaiar, sem ficar com problemas de orçamento. “Não cobramos aluguer. Nunca mais me esqueço de uma conversa que tive com a Teresa Salgueiro há uns anos. Ela perguntou se poderia vir para aqui ensaiar, e quis saber: quanto é a hora? E eu disse: Teresa, 60 minutos. Para alguns músicos cria um certo embaraço e acabam por oferecer, em contrapartida, vir aqui fazer um concerto.” Quem está de regresso a casa é o pianista Júlio Resende, “uma imagem de marca do jazz nacional e da Fábrica”, que se senta ao piano todas as sextas-feiras. Mas, para reforçar o pagamento de todos os artistas que aqui dão música, o bilhete para assistir aos concertos passa para 10€, o dobro dos 5€ praticados até agora.

A FBP está ainda a desenvolver uma dimensão “mais infantil” da música, com uma parceria com a escola Stellaria, de Campo de Ourique, que aqui instalou a sua Escolinha de Ópera. A par desta parceria, vai também iniciar-se um atelier musical para crianças, organizado pela casa. Os miúdos também se podem inscrever nas aulas de teatro infantil que acontecem aos sábados à tarde com a Companhia Cativar, o que acontece há seis anos. Já os adultos podem festejar a vida com uma série de aulas de dança que este espaço acolhe, entre danças latinas, kizomba, bachatas ou forró.

A outra dimensão são as artes plásticas que vão pontuando as oito salas de exposição disponíveis. “Para esta nova versão da Fábrica contratei um curador, um artista plástico de renome internacional, Pedro Baptista. Lançou também um call para artistas plásticos, está a receber imensas propostas e está a pensar fazer um festival de artes plásticas anual”, adianta. Também a fotografia merece um lugar de destaque na “nova” FBP, graças à criação da Incubator Gallery, que neste momento tem três exposições em simultâneo.

Uma delas merece especial destaque e parte de um livro do jornalista Paulo Moura. “Publicou em 2021 um livro que eu acho fundamental, que devia ser lido por toda a gente no mundo ocidental, que se chama As Cidades do Sol, um conjunto de reportagens que questiona as utopias, ou falta delas, da classe média destas economias em crescimento. Ficámos impressionados com este livro, organizámos um conjunto de conversas e a 23 de Janeiro fizemos a primeira em streaming com o Pacheco Pereira. O segundo convidado será Rui Tavares [25 de Fevereiro] e todos os meses vamos fazer uma conversa a partir do livro do Paulo Moura. Ao mesmo tempo, Fernando Gonçalves, o responsável pela Incubator Gallery, pediu a Paulo Moura para ceder as fotografias do telemóvel que tirou durante as suas viagens, porque o livro só tem relatos literários, e algumas, de um total de três mil, já estão em exposição.” Uma exposição “em construção”, porque vai aumentando todas as semanas até ao final do ano.

As Cidades do Sol
Fotografia: Ricardo LopesAs Cidades do Sol

A literatura também merece lugar de destaque na FBP, reanimada com mais lançamentos de livros, uma feira do livro (que arrancou em Outubro, chamada Braço das Artes), a presença do acervo da Ulmeiro, histórica livraria que teve de sair de Benfica, e agora a presença de uma nova editora em residência na FBP: a Ponto de Fuga, do editor Vladimiro Nunes, que irá acrescentar ao catálogo, por exemplo, teses de filosofia – “coisas que não se vendem, mas que nós queremos publicar”. O filósofo diz ainda que está a reabilitar a livraria da FBP para que “venha a ser uma grande referência das ciências humanas”.

A tal “dimensão dionisíaca” irá continuar a ter o seu palco no restaurante e nos cinco bares de serviço e até em festas privadas ou mesmo casamentos. “Há pessoas que fazemos questão de casar aqui. É uma quarta dimensão importante que favorece o crescimento demográfico.” Mas há outra dimensão especial e alternativa em formação na FBP. “Vamos criar cursos livres. Vou em Março iniciar um curso de Filosofia Contemporânea, de enorme actualidade, chamado ‘Da Dívida à Pandemia’. Neste momento, já há um bom património teórico sobre a dívida e sobre a pandemia, escrito por grandes nomes da filosofia contemporânea”, explica. O curso acontece em Março, às quartas-feiras, tem a duração de três meses e será de participação gratuita. Quem sabe o início de um sonho antigo de aqui criar uma Universidade de Filosofia alternativa.

A FBP tem ainda uma parceria com a RTP2, mais concretamente com o programa cultural Vamos beber um Café e Falar Sobre Isso, onde cada episódio é gravado numa sala diferente da FBP. Outra parceria audiovisual, e uma grande novidade, é o novo canal de streaming Canal Cultura, que arranca a 1 de Março. “Estão a fazer aqui um conjunto de entrevistas com os grandes nomes da cultura portuguesa. Na sequência da entrevista com o José Cid, ele foi visitar a tenda e descobriu que quer celebrar os seus 80 anos ali, com um grande concerto no dia 4 de Março que vai ser emitido em streaming”, revela. Mas quem quiser assistir ao vivo, terá a possibilidade de comprar um bilhete (10€).

Em todas estas dimensões, a FBP volta a provar que é um espaço único e Nuno Nabais gostaria que fosse replicada noutros locais da cidade. “A CML podia perfeitamente multiplicar este exemplo e ceder património a custo zero a comunidades artísticas”, que em contrapartida poderiam tomar nas suas mãos a responsabilidade de renovar esses mesmos espaços. Entretanto, pode consultar toda a programação em www.bracodeprata.com.

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