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centro de marvila, Praça David Leandro da Silva,
Fotografia: Manuel Manso

O que vai ser de ti, Marvila?

Há um ano era o bairro que mais prometia na cidade, mas há quem esteja de saída. Fomos estudar o ponto da situação.

Renata Lima Lobo
Escrito por
Renata Lima Lobo
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Ainda não tinha aquecido quando começaram a chegar notícias vindas de Marvila, desta vez bem diferentes do habitual. Alguns dos negócios que nos últimos anos encheram o bairro de novas ideias, resgatando o passado industrial com a instalação de fábricas de cerveja artesanal ou espalhando criatividade nas mais diferentes áreas, fecharam ou iam fechar. Depois do encerramento do Beatus e do Capitão Leitão em 2019, o restaurante Dinastia Tang fechou em Fevereiro. O tradicional Café Velho diz adeus em Maio e com os dias do contrato contados estão espaços como o Aquele Lugar Que Não Existe ou o Spot Real. A Fábrica Musa sai até ao final do ano, mas está à procura de soluções dentro do bairro.

Palavra aos antigos
José Alberto Caldera mantém o quiosque no centro da Praça David Leandro da Silva onde trabalha há duas décadas. “A vida é assim, vão uns, vêm outros. Agora mora cá mais gente. Isto era uma zona industrial, até Moscavide era só fábricas”, lembra. “Ainda há restaurantes que estão cheios, mas agora é o pessoal com mais papel. Daqui a dez anos é tudo para o turismo”, vaticina o vendedor.

 De bem com a vida está também José Almeida, um dos sócios do Café Velho, com quase 40 anos. O restaurante encerra a 31 de Maio, por acordo com o proprietário, a Fundação Maria António Barreiro. O Tio Zé, como lhe chamam os clientes, está aqui desde os 28 anos – e leva boas memórias. “À hora do almoço não havia lugar” descreve, recordando os tempos em que milhares de trabalhadores da Fábrica José Domingos Barreiros, encerrada nos anos 70, se sentavam à sua mesa. A fábrica, inserida num quarteirão histórico que há mais de um ano foi vendido a uma empresa chamada Refletecarismas, SA, tem como sócios três portugueses e um fundo estrangeiro com sede na Suíça. O projecto está entregue ao arquitecto Frederico Valsassina, mas não se conhecem mais pormenores. No Café Velho, especula-se: “Eles dizem que ainda não está vendido [o café], mas tenho as minhas dúvidas”, diz José. Mário Coelho, antigo trabalhador da José Domingos Barreiros e cliente fiel, continua: “Agora é fino vir para o Poço do Bispo. Era uma zona adormecida, agora é nova. Mas este é o gajo que faz os melhores caracóis da cidade, melhores que os do Júlio [dos Caracóis].”

O que contam os novos
Puseram Marvila nas páginas dos jornais. São fundadores de espaços de cowork, de restaurantes, lojas, cafés, fábricas de cerveja, bares ou galerias. Os primeiros a chegar foram Frederico Miranda e Frederico Mancellos, fundadores do Todos Creative Hub, criado em 2013 e que aloja dezenas de criativos num armazém recuperado. Em 2017 cresceram e inauguraram o espaço E Mais Alguns, para projectos artísticos e performances. A sua posição em Marvila não está em risco, mas vão ouvindo os rumores. “Viemos da Lx Factory, porque é apetecível e as rendas começaram a aumentar. Aqui é a mesma coisa, mas à escala de bairro. Mas também não achamos que a progressão não é boa. As coisas evoluem e é difícil separar o trigo do joio. É um agridoce. Na nossa rua está a ser construído o Prateato”, diz Frederico Mancellos, que gostava de um maior acompanhamento do processo. “Não percebemos como não há alguma curadoria do Governo em fazer com que os grupos de investimento venham para aqui no sentido cultural. Um travão que mantivesse a traça.” Frederico Miranda conclui: “Há coisas interessantes e uma incoerência em tudo o resto. Não se protege a comunidade.”

Bruno Pereira, responsável pelo Departamento, um “amplificador de cultura” que desenvolve projectos como a mostra Poster (a 5ª edição é em Junho), gosta de ver as coisas pelo lado positivo. “Ainda acredito que vai ser uma cena do caraças. Acaba de um lado, mas acontecem coisas positivas”, diz, lembrando um francês que comprou um edifício para fazer uma galeria de arte com vinis. Mas guarda reservas. “Uma comunidade criativa gigante foi para trabalhar num território por explorar. E pode de repente desaparecer um oásis criativo e ficar um sítio qualquer, sem personalidade”.

Um oásis criativo e desportivo que está de saída é o Spot Real, que nasceu em 2015 num armazém abandonado, pelas mãos de quatro praticantes de parkour. Tem até Março de 2021 para abandonar o espaço e já anda à procura de alternativas. Talvez se junte ao Crossfit Alvalade Oriente, outro vizinho de saída. Mas “dentro de Marvila não dá. Os espaços para arrendar estão muito caros”, diz Hilário Freire, sócio do Spot Real.

Paredes meias, vive o LisbonWorkhub, inaugurado em 2014 nos históricos armazéns de vinho Abel Pereira da Fonseca. A reabilitação valeu-lhes uma Menção Honrosa no Prémio Nacional de Reabilitação Urbana 2016. Sara de Praetere, arquitecta e co-fundadora, está em fase de negociações do contrato com o proprietário, mas já tem plano B. “Vamos abrir um espaço maior ali perto. Queríamos manter a dinâmica que trouxemos a Marvila. Abre no Verão, independentemente de ficarmos”, avança a arquitecta, que não esconde alguma pena de estarem a vender espaços para habitação, porque receia a descaracterização da zona. Mas, como sublinha, “está tudo no início”. “Ao passar de mãos até pode ser um grupo que queira manter os negócios.”

O resistente

O terreno que hoje acolhe o pólo cultural Fábrica Braço de Prata (FBP) pertenceu até 1990 à Fábrica do Material de Guerra. Nuno Nabais, filósofo e professor na Faculdade de Letras, encontrou aqui em 2007 um edifício abandonado, vandalizado e esquecido. Pertencia à empresa Obriverca – a mesma que detinha os terrenos para o projecto Prata Riverside Village, entretanto desembargado. Segundo Nabais, “fizeram um acordo com a Câmara Municipal de Lisboa [CML] em como os terrenos da FBP passariam para a CML quando as licenças de habitação dos apartamentos estivessem atribuídas”. Com o proprietário, o filósofo fez um contrato de comodato, comprometendo-se a fazer todas as reparações sem pagar renda. Até hoje pouco mudou, excepto o passar de mãos do terreno para a Vic Properties. Em 2017, conta Nabais, “Duarte Cordeiro [então vice-presidente da CML], propõe uma renda de zero euros, por considerar que este é o melhor centro cultural que sai de graça à cidade”. Mas pede lista de contrapartidas. Uma lista que está feita, mas Nuno continua a aguardar um contacto do município. E a FBP aguenta-se. “Neste momento está a fechar tudo em Marvila. Nos próximos cinco anos isto vai ser um estaleiro. Somos um enclave de resistência.”, observa o filósofo, que gostava de abrir ali uma universidade privada de filosofia política, de pós-graduação.

Vai ou não vai?

Fotografia: Manuel Manso

Lembra-se quando juntámos este talento todo aqui na imagem para uma capa da Time Out? Estávamos em 2018 e afirmávamos sem hesitar que Marvila era o bairro mais cool e criativo do momento. Volvidos dois anos, Tiago Neto foi saber qual é o destino das figuras e dos seus negócios.

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Café Com Calma, negócio pioneiro em Marvila, será um dos sobreviventes. Ainda assim, Rita Estanislau não está indiferente às mudanças. “Estávamos a ter um crescimento natural, as pessoas habituaram-se, funcionava como uma aldeia, e de repente vai tornar-se num dormitório. O meu medo é que o conceito da zona mude e surja desinteresse.”

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O projecto de Vasco Magalhães e Rui Rodrigues, ao contrário do bar homónimo, será outro dos resistentes. Isso não descansa o baterista. “Não estamos incluídos nesta quadratura [de saídas] mas estamos sensíveis, principalmente para o caso da Musa. Estamos preocupados e expectantes, porque as coisas começam a parecer mais difíceis. Temos pouca voz. A cidade precisa disto, é uma pena acabar com o bairro cultural de Marvila.”

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A Musa, um dos actuais símbolos de Marvila, ficará de pé pelo menos até ao final do ano. Quem o garante é um dos fundadores, Bruno Carrilho. Depois, o futuro é incerto. “Pelo menos até ao final do ano ficamos. Mais do que isso, depende da vontade dos senhorios. É uma pena o que está a acontecer, quando isto começava a ganhar vida, os projectos vão ser corridos. Eles querem que algum papalvo compre aquilo sem projecto.”

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O chef e empresário é outro caso de incerteza no bairro. “O nosso contrato renova-se todos os anos, é possível que tenhamos de sair, mas só o vamos saber em Junho ou Julho”, altura do final do contrato. Para já, Chakall está a preparar alternativas, mas Marvila continua a ser “um sítio único. Gosto muito de Marvila, não vou para onde estão os turistas. Os donos foram espertos, deixaram o bairro crescer. Mas aqui quem manda é o dinheiro”, termina.

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“Viemos para ficar”, reforça Francisco Fino, sobre a galeria homónima que ocupou na Rua Capitão Leitão. “Mas é normal que quando as coisas começam a funcionar, haja outro tipo de interesse”, diz sobre a conjuntura do bairro, e mostra-se entusiasmado com o futuro. “Vai crescer um projecto paredes meias com a galeria, o Jungle Loft, com espaços comerciais. Isso é interessante para nós.”

Marvila de baixo

Fotografia: Duarte Drago

Fala-se muito sobre a cena cultural de Marvila, mas anda sempre à volta da área que circunda o Poço do Bispo. Mas Marvila é bem maior e tem outras coisas para oferecer mais acima. É que a freguesia abrange locais como o Parque Vinícola de Lisboa, junto à Rotunda do Relógio. A poucos quilómetros, a Avenida do Santo Condestável recebe todos os domingos uma das maiores feiras populares da cidade: a Feira do Relógio, que tem de tudo um pouco para oferecer entre as 07.00 e as 14.00. Espaços verdes abundam na freguesia, como o Parque da Bela Vista, o Parque Urbano do Vale de Chelas ou o Parque Urbano Vale da Montanha, aberto desde 2018. Mais próximo do Braço de Prata mora o Parque Urbano do Vale Fundão. Uma das jóias da coroa da freguesia é a Biblioteca de Marvila, na Rua António Gedeão, a maior e mais recente biblioteca municipal de Lisboa. Inaugurada em 2016, tem um auditório com 187 lugares, uma horta comunitária, acolhe um grupo de teatro e um coro infantil e é palco dos mais variados eventos, do cinema às tertúlias E também há clássicos em Marvila. Como o Júlio dos Caracóis, que está de portas abertas desde 1959e onde ainda se fazem filas à porta para comer pratos e pires de caracóis ou caracoletas. Quer ver a bola em Marvila? A 8de Março, às 15.00, o Oriental recebe o Esperança de Lagos para o Campeonato de Portugal no Estádio Engenheiro Carlos Salema.

O futuro de Marvila

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