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Finalmente Menino Júlio
DRFinalmente Menino Júlio, de Joana Cotrim

Esta peça convida-nos a trocar de lugar com o outro. E vai dar um filme

Joana Cotrim troca o género aos papéis de ‘Menina Júlia’, do sueco August Strindberg. Fomos ver o que acontece quando um homem veste a pele de uma mulher, e vice-versa.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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Em Menina Júlia, clássico do sueco August Strindberg, narra-se a história trágica da breve relação entre uma dama aristocrata e um dos seus criados. Em Finalmente Menino Júlio, de Joana Cotrim, o tom quer-se cómico e o género das personagens invertido. A ideia nasceu de um desgosto amoroso. Ou do princípio de um. É a actriz, que assina o texto, quem o confessa, logo a seguir a um ensaio no Pólo Cultural das Gaivotas, ainda longe da versão que se estreará a 7 de Setembro, nas Carpintarias de São Lázaro – e mais longe ainda daquela que depois chegará ao cinema. “Estava numa relação em ruptura e a nossa vida era tão infernal naquela altura que, às tantas, eu sacava de peças de teatro e dizia assim ‘vamos ler isto, tu vais ser a mulher, eu o homem’. Não deu em nada, separámo-nos na mesma, mas fiquei com vontade de investigar se seria possível, de facto, vestir a pele do outro.”

Quando a actriz pensou em levar à cena a sua experiência pessoal e íntima, imaginou um espectáculo a partir de, não uma, mas três peças, todas com mulheres fortes e determinadas a escapar a um qualquer lugar pré-designado pela sociedade. O projecto inicial teve, contudo, de ser repensado. “Por um lado, só uma peça já era muita coisa. Por outro, interessava-nos resgatar esse intervalo, entre o teatro e o cinema, em que de repente é real demais”, revela a actriz e realizadora. “Mas nem sequer tínhamos financiamento para isto. A [Fundação Calouste] Gulbenkian deu-nos apoio financeiro para uma peça, só comigo e o Pedro [Sousa Loureiro], e depois começaram a surgir dinheiros, da DGArtes e da Câmara Municipal de Lisboa, e resolvemos conciliar.”

Os ensaios só duram há um mês e meio, mas o processo criativo já começou há dois anos. As rodagens da longa-metragem tiveram início em 2021, e vão ser terminadas em palco, durante as apresentações previstas. “As gravações [exibidas em cena] focam-se sobretudo nos ensaios para a peça e cruzam esses dois campos artísticos, tal como acontecerá em palco, com o espectáculo a decorrer ao mesmo tempo que se filmam as restantes cenas, projectadas em tempo real”, conta. “Temos ainda um filme, com outros planos que fizemos, que incluem conversas sobre o processo de trabalho. Estamos a concorrer para o ICA [Instituto do Cinema e Audiovisual] e, para o ano, vamos ver se conseguimos finalizar a longa.” Até lá, tencionam continuar a desafiar o binarismo – homem/mulher, cinema/teatro, encenado/improvisado – com o cruzamento de diversas realidades, porventura ficcionadas, mas sempre com o intuito de esclarecer e empatizar com o lugar do outro.

Será um homem capaz de representar, com credibilidade, o que seria a dor, o sofrimento e o pensamento do sexo oposto? E não haverá, porventura, lugar para a mulher num território privilegiadamente masculino, onde não é preciso ceder a rasgos e gritos emocionais para conquistar algum espaço e palavra? E o que é isso de ser masculino ou feminino? É a partir destas e de outras questões que Finalmente Menino Júlio aborda a diferença e a igualdade de género. Nesta versão, o aristocrata é ele e a criada é ela. À primeira vista, esta dinâmica de poder é até mais estereotipada. Mas a dinâmica emocional talvez não seja. É que, como dita a inversão de papéis, afinal é ele que está perdido de amores e ela a arrivista, fria e manipuladora.

Em cena, a acção desenrola-se entre uma sala vazia e uma cozinha, quase sempre ocupada por uma terceira personagem, interpretada por Sérgio de Brito, que também assina a produção. Os diálogos são esgrimidos, às vezes em excessos de amor e ódio; as personagens passam a vida a comer e a beber, como que a preencher vazios emocionais; e o final do Júlio, esse, é exactamente igual ao da Júlia. A sua suposta masculinidade não o salva do suicídio, tal como a feminilidade de Joana não a impede de ambicionar mais para a sua vida, ainda que, neste caso, o sonho não seja tanto um hotel à beira de um lago, mas um alojamento local, estilo Airbnb. “Estávamos a respeitar muito [o texto] no início e estava muito barroco, muito esquisito. Estava a custar-nos imenso dizer e fomos desconstruindo, ficando cada vez mais coloquiais”, partilha Joana, reforçando a crença de que, agora ou há mais de um século, quando a obra de Strindberg foi publicada, em 1888, há sempre espaço e é sempre pertinente reflectir sobre a suposta batalha dos sexos, mas também sobre as classes sociais. E os papéis que a sociedade nos designa dentro dessas mesmas classes.

Carpintarias de São Lázaro. 7-11 e 14-17 Set, Qua 21.30, Qui-Sáb 19.00/ 21.30, Dom 19.00. 10€

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