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Edifícios Pantera Cor-de-Rosa, Chelas
Francisco Romão Pereira / Time OutEdifícios Pantera Cor-de-Rosa, Chelas

Habitação, sim. Mas “não queremos construir um cogumelo no meio de um terreno”

Construir habitação pública é também uma forma de “fazer cidade”, defendem os arquitectos. Partindo da grande empreitada em curso, à boleia do PRR, eis alguns dos planos para Lisboa.

Rute Barbedo
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Rute Barbedo
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Os próximos “três anos vão ser absolutamente decisivos”, garante Marta Sequeira, curadora de “Habitar Lisboa”, que, mais do que uma exposição, é um fórum sobre a habitação, a decorrer até 28 de Abril na Garagem Sul – Centro de Arquitectura do Centro Cultural de Belém (CCB). Além do percurso ao longo de 50 anos de habitação pública no país (que corresponde apenas a 2% do parque total), do programa fazem parte conversas sobre cooperativismo, coesão social, urbanismo e, acima de tudo, arquitectura, porque, apesar do pouco tempo para cumprir o anunciado pelo Governo construir e reabilitar 26 mil fogos para arrendamento a preços acessíveis, até 2026 , esta é “uma oportunidade para questionar a habitação” e pensar em diferentes formas de garantir o acesso a alojamento. 

A “oportunidade” é o maior investimento em habitação pública desde o Plano Especial de Realojamento (PER), executado entre 1993 e 2003, que serviu para retirar mais de 30 mil pessoas de barracas em todo o país. Recuando um pouco mais no tempo e na garagem do CCB, chega-se a programas marcantes como o Fundo de Fomento à Habitação (1969-1982) ou o sonhador Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL, 1974-1976), ambos com o intuito de assegurar casas às classes mais pobres. 

Em 2023, e apesar de as barracas ainda subsistirem, a precariedade na habitação atinge a população de uma forma muito mais transversal. Foram identificadas pelo menos 86 mil famílias com carências habitacionais, que podem ir desde questões de salubridade a situações de não renovação do contrato de arrendamento ou de incapacidade económica. Mas o número, calcula-se, será muito maior, perante a subida de mais de 6% ao ano do valor das rendas, desde 2014, e das taxas de juro nos créditos à habitação. Um fenómeno particularmente agudo em Lisboa.

Projecto para a Rua do Beato
DRProjecto para a Rua do Beato

“Agora, o projecto [habitacional] é outro. E é só porque o problema da habitação chegou à classe média que se está a fazer alguma coisa, porque é uma classe que tem voz”, acredita Miguel Judas, um dos arquitectos representados na exposição, que dá o nome ao projecto vencedor do concurso público para um edifício no Beato, em Lisboa. Não estão nos planos bairros sociais, mas “prédios com garagem e arrecadações”, de Benfica a Marvila. O projecto do Beato, por exemplo, “é um prédio de habitação acessível numa zona que está num processo de gentrificação muito acelerado”, enquadra o arquitecto.

Também na zona oriental, para onde se prevê o maior crescimento imobiliário da cidade nos próximos anos (o Vale de Santo António, Entrecampos, o eixo Praça de Espanha-Campolide, a Alta de Lisboa, Alcântara e Pedrouços são outras “novas centralidades”, como lhes chama a autarquia), vai ancorar-se um dos projectos mais significativos de habitação pública, o do Vale Formoso de Cima. A par do alojamento, planeia-se comércio, serviços, espaços verdes e hortas urbanas, tudo em comunicação com o futuro Parque do Vale Fundão. “Marvila é claramente uma zona emergente”, afirma a autora do projecto, Inês Lobo, que traz uma proposta inovadora para responder à urgência do momento: “As casas [modulares] serão construídas em fábrica, o que optimiza os tempos de concessão e garante melhores condições de trabalho para quem executa a obra, que é algo em que também temos de pensar”, conta à Time Out.   

Já em Chelas, Inês Lobo venceu, com Ricardo Bak Gordon e Ricardo Carvalho, o concurso da Quinta das Conchinhas (168 fogos). É uma “oportunidade para dar novos sentidos a lugares complexos”, o que apenas se consegue através de um diálogo prévio com a população e da aposta no espaço público. “Não é uma obrigação da encomenda, mas temos feito esse trabalho por livre iniciativa. Esse diálogo é minha responsabilidade, enquanto arquitecta”, diz, frisando que o direito à habitação não significa apenas a garantia de acesso. “É a liberdade de escolha de onde quero viver.”

Fazer cidade

Paralelamente à urgência que é o acesso à habitação, os arquitectos vêem nos próximos três anos uma brecha para apostar no espaço público e investir na coesão social, ou seja, “fazer cidade”, como diz Paulo David, autor de um dos maiores projectos de habitação pública para Lisboa, a Quinta da Baldaya (266 apartamentos). A pergunta que o arquitecto madeirense fez quando chegou aos terrenos do antigo Laboratório Nacional de Investigação Veterinária, em Benfica, foi: “Como podemos construir conforto?” Além de repensar a forma como hoje se usa uma casa (fará sentido continuar com modelos estanques como o T1 e o T2, quando o conceito de família está a mudar?), uma das respostas foi aproveitar a encomenda de habitação colectiva para criar espaço público. “Pensámos num jardim que possa ser usado, como o da Gulbenkian”, descreve, mas também em zonas para mais do que “comércio puro e duro”, ou seja, lugares de encontro, lúdicos e culturais, que sejam de paragem e não de passagem. “Nem sempre se aposta nestes espaços, considerados à partida inúteis, mas são eles que permitem a imprevisibilidade dos encontros”, justifica. 

Projecto para a Quinta da Baldaya, Benfica
DRProjecto para a Quinta da Baldaya, Benfica

Para quem se pergunta se estas não serão hiper-exigências num tempo em que não é suposto limpar armas, Paulo David responde: “A arquitectura tem de elevar o seu papel mais do que nunca. Por vezes, pedem-nos mais casas, mas temos de responder com mais resistência.” Não cair em erros do passado, como criar blocos isolados na periferia ou “prédios que vão ter problemas daqui a 20 anos”, como sugere Sara Jacinto, do atelier Cura, é uma prioridade. “Não queremos construir um cogumelo no meio de um terreno, se não há uma padaria ou um autocarro a sustentar o lugar. São precisos transportes, serviços, é preciso rua. Tem de haver uma preparação em termos urbanísticos e sociais e não acho que isso esteja a acontecer”, diagnostica a arquitecta.

Afastar as pessoas do seu centro de vida (e não só do centro da cidade), ou colocá-las num tipo de habitação que não corresponde à sua forma de estar são outras falhas que a exposição “Habitar Lisboa” induz a pensar. Foi o que o arquitecto e secretário de Estado Nuno Portas quis evitar ao lançar o SAAL, o arriscado programa cooperativista que colocou futuros moradores junto a arquitectos e engenheiros a desenhar e a construir as próprias casas, no pós-25 de Abril. Só no Algarve, construíram-se 1000 habitações num ano e meio. “Não teria sido possível tanta quantidade em tão pouco tempo se não fosse o SAAL”, assegura José Veloso, arquitecto responsável pelo projecto no Algarve, no documentário As Operações SAAL (2007), de João Dias, que chega este mês à plataforma Filmin em versão restaurada. Para Marta Sequeira, a curadora de “Habitar Lisboa”, esta é uma das principais provas de como “os arquitectos têm uma enorme capacidade de resolver problemas em contextos de urgência”, como o presente.

Planos versus realidade

Apesar de os planos do Governo parecerem promissores, os atrasos e dúvidas sobre como os diferentes programas serão executados fazem abrandar os ânimos. Sobre a construção de 6800 habitações públicas até 2026 (o prazo inicialmente previsto era 2024), em particular, há duas grandes questões. Uma é que os 2,7 mil milhões de euros vindos do PRR foram calculados antes da subida dos preços dos materiais de construção e da mão-de-obra, o que faz antever que se terá de cortar em algum lado. A outra é que, de acordo com o portal do Governo Mais Transparência, até agora, foram pagos menos de 8% dos fundos previstos para este programa. 

A 18 de Outubro, o primeiro-ministro referiu “Neste momento, entre concurso, obra e conclusão, temos já 17.500 fogos”, cita a TSF. Quanto tempo representam as diferentes fases é um mistério para todos. Também quanto aos projectos que já venceram concursos, nada é definitivo. “Ainda está tudo muito no início. Não deixam de ser habitações a custo controlado e o processo pode dar muitas voltas”, antecipa o arquitecto Miguel Judas.

“Além de se anunciarem planos”, sugere à Time Out o economista João Pereira dos Santos, que foi assessor do secretário de Estado adjunto de António Costa entre 2019 e 2021, “era importante saber como eles estão a evoluir”. “Sabemos que têm sido fechados vários acordos com os municípios. Mas que acordos? E também sabemos muito pouco sobre o tempo médio dos licenciamentos… É preciso mais transparência”, defende o professor no ISEG, que critica igualmente o facto de não se medir o impacto de políticas de habitação adoptadas no passado, para poder decidir o futuro. “A habitação está longe de ser um tema novo, mas tem havido muito pouca discussão. É muito importante que se esteja finalmente a falar sobre isto e a correr atrás do prejuízo.”

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