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Ir ao teatro e sair de lá cheio de dores: dói-me aqui de lado, doutor

Escrito por
Miguel Branco
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Variações Sobre o Modelo de Kraepelin, co-produção Palco13/Artistas Unidos, com encenação de Gonçalo Carvalho, está na zona do alzheimer. E de tudo ser normal. Estreia esta quarta-feira no Teatro da Politécnica.

Uma apendicite é mais do que razão para não ir para a guerra. Ainda que seja inventada, ou apenas uma dor na zona onde julgamos que esteja o apêndice. O que importa é não ir, é ter medo, para não irmos todos, em prol da preservação da espécie. O primeiro homem – num total de três aqui presentes – é bem capaz de já nos ter dito isto, que a guerra ainda dura depois da conquista de Berlim, mas com outro nome. É, ele já nos deve ter dito, não se lembra. Sabemos lá. O que sabemos é que Variações Sobre o Modelo de Kraepelin é sobre um homem, esse primeiro homem, que padece de alzheimer; também sabemos que é um texto do dramaturgo italiano Davide Carnevali, uma encenação de Gonçalo Carvalho e uma co-produção Palco13/Artistas Unidos. Isso sabemos. E que se estreia esta quarta-feira no Teatro da Politécnica, pois é, também sabemos.

Além do primeiro homem, há o segundo, que é seu filho – embora por vezes seja tratado por papá pelo seu pai demente –, e ainda um terceiro, que é o médico. E situa-nos nos loops do mais velho, nas repetições discursivas, na desconexão, na resposta ao poste, como quando perguntamos a alguém como é que está e obtemos como resposta o jantar do dia anterior: pataniscas. É também sobre a angústia de um filho que anseia por uma cura que não chegará, e sobre um médico que não quer saber do paciente mas sim daquilo que este caso em particular lhe oferece em termos clínicos. É uma daquelas pessoas irritantes, relativizantes, cuja grande maioria das respostas assume a forma de “é normal”.

Gonçalo Carvalho, encenador, sabe bem do que aqui se trata: “É um texto que fala sobre a perda da memória e por conseguinte a perda de identidade, e o meu avô teve alzheimer e portanto isso saltou-me logo à memória, eu vivi estes loops, estas repetições, portanto relacionei-me muito com isto”, conta. Perante um cenário em V, branco-integral, com mesa, cadeira, cama, pouco mais, reina a palavra, que é, por um lado, aquilo a que o primeiro homem se agarra para se tentar lembrar de algo – além da palavra há um quadro sem importância nenhuma, um cartaz, uma daquelas cópias banais da lojinha do museu que parece dizer-lhe muito – e que é, por outro, aquilo que a encenação quer destacar: “Acho que é um texto de palavra, acima de tudo, que tem que ser bem dito, não de uma forma correcta, do teatro, de todo, tem que ser o coração das frases, está escrito o essencial, só vive disso, não vive de grandes luzes nem de grande maquinaria, vive de três actores que têm que jogar com a palavra entre eles”, explica Gonçalo.

Há jantares cansativos, repetitivos, portanto, há aconselhamento médico, há memória perdida em forma de vídeo, histórias circunstanciais que o filho usa para tentar estar com o pai, jogos de cartas com flores, um coelho que dança e a receita para um belo estufado do mesmo, mergulhando-se ainda mais fundo no absurdo nesta última zona, talvez da cabeça do primeiro homem. Ou seja, voltamos à guerra. Voltamos a ter apendicite.

Teatro da Politécnica. Ter-Qua 19.00. Qui-Sex 21.00. Sáb 16.00 e 21.00. 6-10€.

De Davide Carnevali
Encenação Gonçalo Carvalho
Com João Pedro Mamede, João Vicente, Vicente Wallenstein

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