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Palco, Teatro, O Cerejal, Anton Tchékhov, Tiago Rodrigues
©Teatro Nacional D. Maria IIO Cerejal, de Anton Tchékhov, com encenação de Tiago Rodrigues

Isabelle Huppert e Tiago Rodrigues n’O Cerejal

Depois da estreia em Avignon, o espectáculo do encenador português chega à sua casa dos últimos anos, o D. Maria II, com uma estrela do cinema e do teatro francês.

Escrito por
Mariana Duarte
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Tudo começou num jantar nas redondezas do Teatro Nacional D. Maria II, em 2018. Isabelle Huppert, que estava em Portugal para a rodagem do filme Frankie, de Ira Sachs, encontrou-se com Tiago Rodrigues. A actriz francesa e o encenador e dramaturgo português, então director artístico do D. Maria II, já haviam partilhado uma admiração mútua pelos respectivos trabalhos e perceberam, rapidamente, que existia uma vontade partilhada em cruzar caminhos. O ponto de encontro foi Anton Tchékhov e a sua derradeira peça.

“Já não sei quem disse Tchékhov primeiro, mas numa mesma noite ambos dissemos Tchékhov muitas vezes e, antes que déssemos conta, já estávamos a prometer um ao outro fazer O Cerejal juntos”, recorda Tiago Rodrigues. Promessa cumprida. Depois da estreia, em Julho, na 75.ª edição do Festival de Avignon – momento em que Tiago Rodrigues foi nomeado o novo director artístico desse mesmo festival, um dos mais importantes acontecimentos mundiais das artes performativas –, O Cerejal chega ao D. Maria II esta quinta-feira, com um elenco franco-português encabeçado por Isabelle Huppert e Adama Diop.

Apesar de serem ambos fãs acérrimos de Tchékhov, nem Huppert nem Rodrigues tinham ainda mergulhado profissionalmente no universo do dramaturgo russo. No entanto, segundo a actriz francesa, ele já pairava nas peças do encenador português. “A Isabelle Huppert falou em Tchékhov como uma influência que reconhecia em alguns dos meus espectáculos”, conta Tiago Rodrigues. “Disse que havia uma espécie de nostalgia doce que encontrava em Tchékhov, mas que os portugueses também tinham muito. Provavelmente é as duas coisas: num ouvido o Camané a cantar, no outro ouvido o Tchékhov a sussurrar.”

Perante um autor cheio de “peças sublimes”, O Cerejal impôs-se por causa de algumas particularidades. Primeiro, por ser talvez a sua obra mais poética, “com uma dimensão surrealista, quase mística, como se ele já tivesse um pé do lado de lá”. Segundo, por ser “uma das peças mais explicitamente políticas” do seu reportório. “As grandes mudanças sociais do seu tempo estão sempre presentes, mas são muito digeridas pela intimidade das personagens”, nota o encenador. “Aqui, a mudança é como mais um protagonista e é referida muito explicitamente, nomeadamente a libertação dos servos – 40 anos antes da acção da peça, os servos foram libertados na Rússia e, pela primeira vez, estes filhos e netos de pessoas escravizadas podem ser donos de alguma coisa, decidir as suas vidas.” Este momento histórico é corporizado por Lopakhine, interpretado por Adama Diop, que acaba por comprar o cerejal, propriedade onde o seu pai era servo.

Palco, Teatro, O Cerejal, Anton Tchékhov, Tiago Rodrigues
©Teatro Nacional D. Maria II

Por último, o terceiro elemento que contribuiu para a escolha desta peça foi outra das personagens centrais, Liubova, encarnada por Isabelle Huppert. “É uma personagem que anima todas as outras com a sua chegada à propriedade e, ao mesmo tempo, começa a marcar uma espécie de contagem decrescente para que aquele cerejal se perca, porque as dívidas da família são enormes”, enquadra Tiago Rodrigues. É ela que vai calibrando este “contra-relógio”, ao longo do qual vai atravessando “muitas mudanças de humor, muitas temperaturas”. “Achei um desafio particularmente interessante para a Isabelle Huppert, que é uma actriz com uma caixa de ferramentas fora da norma, com uma tessitura e uma capacidade técnica extraordinárias”, assinala o encenador, que aqui, ao contrário do seu modus operandi habitual, optou por abordar o texto de forma integral, sem reescritas – “costumo dizer que Tchékhov é o melhor amigo dos actores porque os textos parecem feitos a pensar neles”, diz.

E, de certa maneira, também é o melhor amigo dos encenadores que querem inscrever o teatro de repertório no presente, abordando questões que lhe são urgentes. “Quando planeámos fazer este espectáculo, em 2018, obviamente que não nos passava pela cabeça que viéssemos a viver uma pandemia tão transformadora como aquela que estamos a viver. Mas se há alguma coisa que estas personagens do Tchékhov sentem de uma forma muito palpável, e que nós também sentimos hoje, é a incerteza do futuro”, observa Tiago Rodrigues. “Estas personagens estão num mundo que já mudou mas não encontraram ainda o seu lugar. O grande exercício que tentamos fazer nesta peça é como é que nós, pessoas deste tempo, interpretamos a partitura do Tchékhov.”

O texto assenta em duas questões intemporais, e inevitavelmente entrelaçadas: o desejo de justiça social e a luta de classes, simbolizado pelo confronto entre Liubova e Lopakhine, cujo perfil dos actores que os interpretam acrescentam camadas e leituras que ressoam fortemente nas tentativas de transformação social de hoje. Ao ver Adama Diop, um actor negro que migrou do Senegal para França em adolescente, a interpretar uma personagem que se apodera da propriedade de uma mulher branca, é incontornável não pensar na questão colonial, nas desigualdades raciais – e, consequentemente, materiais –, na necessidade de reparação histórica.

Tiago Rodrigues e a equipa estão conscientes dessa dimensão, mas o encenador refere que é “muito importante que essa consciência não cubra toda a leitura” do espectáculo. “Ela é muito diversa em vários pontos, e a escolha do Adama Diop para interpretar o Lopakhine foi uma escolha artística, não política”, sublinha. “Ele interpreta o Lopakhine porque acredito que é a melhor pessoa para o fazer, tal como a Isabelle Huppert interpreta a Liubova porque acredito que é a melhor pessoa para o fazer.” E apesar de Huppert ser o foco das atenções, este espectáculo é “um exercício coral” que vai além do seu carisma. “Obviamente que há muitas pessoas na sala que estão ali para ver a Isabelle Huppert numa peça de teatro, mas uma das grandes capacidades dela, tanto em palco como nos ensaios, é que depois de três ou quatro minutos a notoriedade ficou lá fora e o que temos é a Isabelle, uma actriz absolutamente extraordinária, de uma grande generosidade, com uma enorme capacidade de trabalhar em colectivo, o que permite que o público esteja a ver o nosso cerejal”.

Teatro D. Maria II. 9 a 19 Dez. Qui-Sáb 19.00, Dom 16.00. 9€-12€

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