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A Troca
© DR: Pedro Soares/ A Comuna – Teatro de PesquisaA Troca, de Paul Claudel, com encenação de João Mota

João Mota: “A liberdade é espantosa, mas é também uma responsabilidade”

A mais recente encenação de João Mota para A Comuna está em cena até ao final do mês. A partir do texto de Paul Claudel, ‘A Troca’ fala-nos sobre liberdade, amor e capitalismo.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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Estávamos em 1894 quando Paul Claudel – diplomata francês então a viver nos Estados Unidos, como vice-cônsul – escreveu A Troca, uma peça em três actos, que se debruça sobre as suas próprias questões existenciais, numa época em que o autor experienciava o exílio, a independência e a contradição entre os apetites da natureza e as exigências da religião. Ambientada na Carolina do Sul, a história segue uma jovem francesa que deixou o seu país para seguir o homem que ama para os Estados Unidos, mas está prestes a ser trocada por uma mão cheia de dólares. Num mundo onde tudo parece estar à mercê do capitalismo, será o amor capaz de resistir? É esta a pergunta central da nova produção de A Comuna – Teatro de Pesquisa, que se estreia esta terça-feira, dia 11, e fica em cena até 30 de Julho. A encenação é de João Mota; Maria Jorge, Rogério Vale, Maria Ana Filipe e Hugo Franco compõem o elenco.

O cenário é minimalista. Um pano branco, um baloiço de madeira, uma cadeira e uma mesinha, também de madeira, e pouco mais. Marthe e Laine, interpretados por Maria Jorge e Rogério Vale, vivem numa cabana junto à água. Ela é a imagem da submissão, ele um mestiço de origem indígena, que ama a liberdade e, não resistindo à tentação da carne, a trai com a actriz Lechy Elbernon, a companheira de Thomas Pollock, o empresário americano que o contratou como caseiro. “[Sobre esta peça] o autor diz-nos uma coisa que, para mim, é muito importante; que cada um de nós tem estas quatro personagens dentro de si”, diz João Mota, que este ano foi escolhido como a personalidade do teatro a ser homenageada na 40.ª edição do festival de Almada, a decorrer até 18 de Julho. “Cada um a vê [à peça] à sua maneira, sabendo que é responsável por estar aqui [e pelo que faz] no mundo, mas é de facto um texto com uma interioridade muito grande.”

Falam-se de temas como a liberdade, o sonho americano, a ligação à natureza e à terra (a que se tem e a que se perdeu, ou a que nos foi roubada, no caso dos povos ameríndios de que Laine descende), e até do amor genuíno e das forças insidiosas capazes de o corromper. Mas pergunta-se sobretudo se ainda existe algo de sagrado num mundo dominado por valores materiais, e esta pergunta que se impõe deriva da troca a que a peça alude e pela qual Thomas Pollock é responsável. Em 1937, num texto de acompanhamento à leitura da peça, Claudel descreveu, aliás, o personagem em questão como um ser “animado por aquela simplicidade honesta que não permite a um homem duvidar do que é bom, e o que lhe parece bom é o dinheiro”. O problema é que, entre o nascer do dia e o cair da noite, o frio comercialista consegue convencer Laine do mesmo e conjurar contra o amor puro e desinteressado que Marthe julga ter.

Em palco, apresentadas as personagens e aproveitando uma cena em que as duas mulheres se ausentam, o drama sentimental adensa-se quando Thomas Pollock (interpretado por Hugo Franco), seduzido pela doçura e fidelidade de Marthe, propõe abertamente a Laine que a troque por uma certa quantia. Arquétipo do homem dividido (ainda que claramente forçado a isso, desde logo pela posição em que a colonização do continente norte-americano eventualmente o colocou), Laine sucumbe, mais uma vez, à tentação. Depois de ceder o corpo, cede a alma, tudo pela oportunidade de partir, livre de compromissos, em busca da sua própria fortuna, a fortuna que lhe dizem ser necessária para ser um homem completo. Mas antes que isso aconteça, há outras forças em acção, nomeadamente um amor muito diferente do de Marthe: o amor não correspondido de Lechy (interpretada por Maria Ana Filipe), que acaba por se revelar uma femme fatale no sentido mais letal do termo.

“A liberdade é das coisas mais espantosas, mas é também uma responsabilidade muito individual, no sentido de se ser exemplo [de tomar as decisões certas, justas], e ser exemplo é muito difícil”, avisa João Mota, antes de evocar os perigos de nos tornarmos tão obcecados com a ideia de liberdade que, por um lado, nos esquecemos do passado e, por outro, não vivemos o presente. “O baloiço [que se destaca pelo espaço que ocupa no cenário] é simbólico: simboliza o equilíbrio, o poder viajar, o poder reflectir, o estar em silêncio, até com o outro. Este está preso à terra, foi construído por ele [Laine], e ele usa-o para tirar os pés do chão, mas depois não tira os pés do baloiço, e isso também é uma prisão, claro. Temos de ser militantes do quotidiano, é no quotidiano que a gente vive, e é preciso estar consciente disso e de que eu não sou o centro do mundo, faço parte, partícula pequenina, de 360 graus.”

O desfecho não é, como seria de esperar, o mais feliz. Há, contudo, afiança João Mota, uma centelha de esperança. “É o filho [ainda por nascer] de Marthe”, desvenda, crente de que o spoiler não é impeditivo para ir ver A Troca ao vivo. “Sabia que, na altura em que isto saiu [para ser adaptado a palco], o cenário americano foi proibido [em representações no estrangeiro]? Há uma recusa deles próprios sobre eles próprios”, lamenta, para nos convidar, logo a seguir, a abrir-nos ao “mundo sensível”, como chama às artes, que acredita serem essenciais para a construção de seres humanos mais empáticos, mais conectados com o espírito do que com o material. “Às vezes, [nesta peça] damos por nós a rir, numa cumplicidade total, pelo ridículo. Pensamos: ‘mas para onde é que eles estão a ir, que parvos’.” Agora, fica a sugestão, resta-nos sermos críticos também fora de palco, com as nossas trocas e baldrocas.

A Comuna – Teatro de Pesquisa. 11-30 Jul, Qua-Qui 19.00, Sex-Sáb 21.00 e Dom 16.00. 10€-12,50€

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