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Woyzeck
© Pedro SoaresHugo Franco em Woyzeck, de George Büchner, com encenação de João Mota

João Mota estreia 'Woyzeck': “Ajudamos muito pouco os outros e, quanto mais pobres somos, pior”

Num tempo em que a violência e a pobreza nos assombram cada vez mais, a Comuna – Teatro de Pesquisa estreia ‘Woyzeck’, obra-prima e inacabada de Büchner.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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Büchner tinha 22 anos quando começou a escrever – a para sempre inacabada – Woyzeck. Ao longo de várias cenas curtas e descontínuas, o autor alemão dá-nos conta da história do soldado Franz Woyzeck. Órfão de pai e mãe, o antigo ajudante numa fábrica de perucas alista-se no exército para escapar à fome. Mas não ter o que comer é o menor dos seus males: desde infidelidades a abusos morais, Woyzeck continua a sofrer todo o tipo de agruras, que culminam não só na sua loucura como no assassínio da sua mulher. Escrita em 1836 e publicada postumamente, em 1877, a peça é considerada um eloquente exemplo da dramaturgia pré-moderna e tem sido alvo de constantes reinterpretações.

“Além de achar maravilhoso pelo seu nonsense e surrealismo, este texto é de uma actualidade…”, diz-nos o encenador João Mota, que leva Woyzeck a cena de 30 de Março a 7 de Maio, na Comuna – Teatro de Pesquisa. “É interessante, porque é um autor jovem, médico, que morre muito cedo [aos 23 anos, de tifo, em exílio na Suíça] e nos deixa peças como a farsa tragicómica Leonce e Lena, e A Morte de Danton. Esta [Woyzeck] são fragmentos [de cenas] que deixou. Não sei se [Büchner] tivesse vivido mais tempo, se a acabaria. Por isso é que cada encenador tem escolhido os fragmentos e a ordem [por que lhe interessa fazer]. A figura do velho, por exemplo, não existe: fui eu que a construí a partir de outras personagens”, revela Mota sobre o papel interpretado por Carlos Paulo, que funciona como uma espécie de narrador e nos convida à reflexão “sobre um assunto tão sério”.

Woyzeck
© Pedro SoaresHugo Franco em Woyzeck, de George Büchner, com encenação de João Mota

Inspirado no caso real de Johann Christian Woyzeck (1780-1824), o texto de George Büchner – reconstruído diversas vezes ao longo da história do teatro ocidental, a partir dos quatro manuscritos que nos chegaram – não é uma mera tragédia de ciúmes. É antes um manifesto sobre o estar no mundo e, ao mesmo tempo, denúncia da perversão da dignidade humana. Pergunta, seremos nós capazes de controlar todas as nossas acções e, portanto, sermos responsáveis por elas, ou estamos irremediavelmente condicionados a agir por impulsos internos e contextos exteriores, como a guerra e a pobreza? “A despersonalização nunca esteve tão grave como está agora, com uma desintegração total da própria humanidade e dos próprios países, e isso é o pior que nos pode acontecer: deixarmos de sermos nós próprios, e sermos um animal só de instintos, sem um lado racional e até sensível”, diz-nos o encenador.

Em palco, a partir da tradução de João Barrento e com direcção de João Mota, Hugo Franco interpreta Franz Woyzeck, que surge, pela primeira vez, acompanhado pelo tambor-mor (Miguel Sermão) e os seus camaradas (Francisco P. Almeida, Gonçalo Botelho, Luís Garcia, e Rogério Vale). Mas, à medida que a acção progride, revela-se cada vez mais sozinho. Vítima dos fantasmas da guerra e cobaia de um médico, que quer testar o efeito de uma parca dieta de ervilhas, Woyzeck parece sofrer de um transtorno dissociativo e de visões violentas e apocalípticas, que não só contribuem como reforçam a deterioração da sua saúde física e mental.

Cada um é o abismo e ficamos com vertigens só de olhar

“Vivemos num mundo completamente grotesco, irrisório mesmo, e de uma fragilidade... Porque [as pessoas] se esquecem daquilo que é essencial na vida, que é o ser sensível. É por isso que, neste momento, as forças negativas já superam as positivas. Cada vez há mais pobres. E cada vez há mais medos”, lamenta João Mota. Para o encenador, o problema reside numa “falta de líderes”. “Cada um devia ser exemplo [para o outro], mas nós não somos sequer exemplo para nós próprios. Estamos numa época sem líderes. O Mandela foi líder, o Gandhi foi líder, o Martin Luther King foi líder. Que líder temos agora? Diga-me um. O Mandela esteve preso durante trinta e tantos anos. Quando saiu de lá, devia odiar aquela gente toda que o prendeu, mas faz exactamente o contrário: escolhe o caminho da paz. Lá está, o ser sensível.”

Em Woyzeck, Büchner fala-nos sobretudo de opressão: a da guerra (a que acontece no mundo e a que se desenrola em nós, muitas vezes silenciosa e diariamente), a da pobreza (a económica e a de espírito) e a de uma sociedade capitalista e pouco empática. “Se formos pobres, mas tivermos um grande acompanhamento, podemos sobreviver. Agora ser pobre e ser abandonado… É um pesadelo constante, e não acaba. O desespero leva a uma grande depressão, e a depressão leva-nos a estados de loucura. A peça fala-nos disso, de sermos todos Woyzeck. Ajudamos muito pouco os outros e, quanto mais pobres somos, pior, parece que temos tinha”, avisa Mota, antes de fazer a apologia da expressão e da arte. “Já viajaste dentro de ti própria? Há coisas maravilhosas que desconhecemos e que habitam em nós.” Hugo Franco concorda.

Não sendo possível salvar Woyzeck, a questão que se impõe é se podemos salvar o futuro. “[No texto] há uma cena em que uns miúdos cantam a meio da peça, e eu fui mesmo a um dos filmes da ópera [de Alban Berg] buscar esse cântico em alemão, porque mal de nós se só pensarmos ‘é isto e acabou’. O caos traz sempre luz, e estamos de facto a chegar a um ponto limite, de viragem”, remata João Mota, que nos desafia a procurar respostas, também no teatro. “O teatro não é um sanatório, não é um hospital: é preciso gostar muito de viver para fazer teatro. Para ver teatro, podem sofrer horrores às vezes, coitados, mas alguns vêm ao teatro para ver se descobrem coisas sobre eles próprios, e há outros que não pensam nisso, mas saem cheios, plenos.”

Comuna – Teatro de Pesquisa (Lisboa). Até 7 Mai, Qua-Qui 19.00, Sex-Sáb 21.00, Dom 16.00. 7,50€-12,50€

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