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Televisão, Série, Biográfico, Drama, Julia (2022)
©DRJulia de Daniel Goldfarb

‘Julia’, a série mais amanteigada da HBO

Julia Child está de volta à televisão. Neste biopic por episódios, Sarah Lancashire interpreta a apresentadora gourmand logo após a publicação de ‘Mastering the Art of French Cooking’.

Hugo Torres
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Hugo Torres
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Se afrouxarmos o rigor das datas em poucas semanas, contam-se exactamente 35 anos desde que Maria de Lourdes Modesto, a entronizada guardiã da cozinha tradicional portuguesa, chegou à imprensa norte-americana de referência. Na edição de 4 de Março de 1987, o The New York Times chamava à primeira página do seu caderno de lifestyle (hélas!, que esta modernice é antiga) a gastrónoma e notável apresentadora da RTP, apresentando-a como “a Julia Child portuguesa”. Era também um afrouxamento do rigor, para criar uma ligação com os leitores locais. Até porque pensar numa ou noutra como versão de uma ou da outra é um apoucamento das carreiras singulares de cada uma delas. Child, que era 18 anos mais velha, começou por escrever o seu influente Mastering the Art of French Cooking (1961, volume 1; 1970, volume 2) e só depois deu os primeiros passos na televisão, com The French Chef (1962). Modesto foi ao contrário: a 15 de Maio de 1958, estreou o seu primeiro programa de culinária; o seminal Cozinha Tradicional Portuguesa, com o seu levantamento exaustivo do receituário nacional, só chegaria em 1981.

São ambas figuras ímpares, vedetas por direito próprio num tempo que não era o das mulheres, e desenvolveram um trabalho com lastro e impacto social. No entanto, como os EUA são mais lestos a celebrar figuras assim, populares e de carne e osso, vamos continuar à espera de algo em formato biopic sobre Maria de Lourdes Modesto e voltar a investir o nosso tempo na história de Julia Child. O grande público não-americano já teve oportunidade de a conhecer através de Julie e Julia (2009), filme com Meryl Streep (nomeada ao Óscar), que está disponível na Netflix. Embora aí já a encontrássemos numa fase muito posterior. Agora, vamos vê-la a conquistar o seu espaço, palmo por palmo, ainda nos anos 1960. É aí que começa Julia, a nova série da HBO, de oito episódios, que se estreia esta quinta-feira, 31 de Março. A cena de abertura é precisamente a do jantar em que Child lê a uma mesa de amigos a carta da editora Knopf a aceitar publicar Mastering the Art of French Cooking. Escrito a seis mãos com as francesas Simone Beck e Louisette Bertholle, este ambicioso livro de receitas viria a promover uma pequena revolução nas cozinhas americanas, mostrando que pratos e técnicas associados ao fine dining estavam ao alcance de qualquer um. Nesse mesmo jantar, Paul Child, o marido de Julia, que trabalhava como diplomata, recebe um telefonema para regressar aos EUA.

São momentos-chave. A viver em Massachusetts, Julia é convidada – de recurso – para um programa numa estação pública local, a WGBH (hoje parte da PBS), a fim de promover o livro. Ela decide levar material para fritar uma omelete francesa na televisão. A resposta dos telespectadores é de tal maneira positiva que essa é a semente para o que virá a ser The French Chef, que seria emitido durante uma década, até 1973, elevando Child a figura pública de alcance continental. Sarah Lancashire (O Vale da Felicidade) dá corpo à mulher altíssima (quase 1,90m) e de voz invulgar, que tem de ultrapassar várias barreiras para fazer vingar as suas ideias. Antes de mais, junto do marido, interpretado por David Hyde Pierce (Frasier), que é forçado à pré-reforma e a dedicar-se ao seu hobby, a pintura, e que embora ame e apoie a mulher precisa de ser persuadido a deixá-la fazer o programa. Como? Fazendo-o pensar que a ideia é sua, e dando-lhe a prerrogativa de escolher os vinhos que acompanham os pratos feitos para o programa. Depois o pai (James Cromwell), e pelo meio todo o rol de chefes e chefinhos homens e snobes no canal de televisão.

Para isso, Julia rodeia-se de outras mulheres, a amiga Avi DeVoto (Bebe Neuwirth) e a editora Judith Jones (Fiona Glascott), tal como uma personagem compósita, a produtora Brittany Bradford (Alice Naman), que também batalha para ser levada a sério na estação. É uma das forças da série criada por Daniel Goldfarb (A Maravilhosa Sra. Maisel): mostra que um ícone cultural não se constrói sozinho, e que para uma mulher – mesmo para uma mulher de família privilegiada, com dinheiro, culta e viajada, que não quer ser disruptiva e respeita o status quo – as provações eram, e ainda são, redobradas. Julia Child não era uma feminista nos termos das suas contemporâneas. Betty Friedan, para nomear uma das mais conhecidas, queria libertar as mulheres da “prisão” da cozinha. Child queria libertá-las dentro da cozinha. Com muita manteiga, um pouco de vinho e produtos fáceis de encontrar no supermercado. Para ela, um boeuf bourguignon, na América, era em si uma revolução.

HBO. Qui (estreia T1)

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