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Revista é Sempre Revista
Francisco Romão Pereira/Time OutRevista é Sempre Revista

La Féria: “Mesmo um espectáculo ligeiro tem que ter uma mensagem”

Depois de um musical, Filipe La Féria volta ao género-rei do Politeama: a revista. ‘Revista é Sempre Revista’ é uma antologia dos melhores momentos da revista à portuguesa, com humor popular, crítica política e a certeza de que “o teatro é uma luta”.

Joana Moreira
Escrito por
Joana Moreira
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A noite cai e a chuva também. Nas televisões jorram imagens de estradas transformadas em rios, carros arrastados, casas inundadas. A destruição provocada pelo dilúvio em Lisboa e os avisos à população para que não saia de casa não comprometem o ensaio da nova revista de Filipe La Féria, na noite antes de se estrear no Teatro Politeama. Quando entramos plateia adentro, o encenador e produtor está sentado, sozinho, na quarta fila. “Falta o actor principal”, desafia-nos. Perante o silêncio retorque: “É o público.”

No Politeama não entrou uma pinga de água, mas as cheias não passaram à margem do habitual corrupio do teatro. Ao final do dia de terça-feira tinham sido devolvidos cerca de mil bilhetes. Dos cinco espectáculos agendados para o mesmo dia – o musical Cinderela, destinado ao público infanto-juvenil – aconteceram apenas dois. “O público é muito generoso porque não anula completamente os bilhetes, põe mais para a frente”, diz o responsável pela sala de espectáculos nas Portas de Santo Antão. “É uma tristeza. Em Paris e em Londres está sempre a chover. Não se percebe”, lamenta.

“Sabe porque é que a gente tem de calçar galochas para marchar? A gente nunca sabe quando é que isto pode inundar tudo”, ouve-se em Revista é Sempre Revista. La Féria não perdeu o humor – nem o ritmo frenético com que há mais de 20 anos apresenta grandes produções naquele espaço na Baixa lisboeta. Esta semana mostra uma peça que fez “em tempo recorde”, escrita em “duas semanas” e montada em “menos de um mês”.

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Francisco Romão Pereira/Time OutRevista é Sempre Revista

Trata-se de uma antologia da revista à portuguesa. Em mais de duas horas, desfilam personagens conhecidas do público, como Eugénio Salvador, Vasco Santana, Beatriz Costa, Hermínia Silva, Estêvão Amarante, Mirita Casimiro, Laura Alves ou Raul Solnado. “No fundo, é a nossa história, é a história de Portugal vista de uma maneira cómica, sentimental”, conta-nos. Às portas de se estrear, a movimentação nos camarins é precisa, qual orquestra. A peça mobiliza uma equipa extensa: Anabela, FF, Paula Sá, Filipa Cardoso, Filipe de Albuquerque, João Frizza, Élia Gonzalez, Jonas Cardoso, Filipa Azevedo, Paulo Miguel Ferreira e Paula Ribas compõem o elenco, a que se junta um grupo de bailarinos e bailarinas.

Em palco, além de números que os espectadores com mais memória reconhecerão, há outros cuja recriação é apenas levemente inspirada no original. “Quando vim para Lisboa não tinha idade para ir ao teatro, havia a classificação etária. Lembro-me que tinha uma empregada em minha casa, a Ermínia, e pagava-lhe para ela ir ao teatro e contar-me tudo. Muitos destes números eu nunca os vi”, recorda La Féria. Alguns “são uma recriação do que ouvia”.

Como é habitual na revista, o texto tem um “duplo sentido, nada é proibido”. Entre o riso e a tragédia, conta-se a história dos teatros da cidade e questiona-se os seus destinos. “Ai, Parque Mayer, Parque Mayer, quem mais te chula é quem menos te quer”, trauteia a actriz que veste a pele de Ivone Silva, vedeta do teatro de revista. “Fizeram do Capitólio um quartel de bombeiros, e do Variedades uma caixa de sapatos, só não destroem o Maria Vitória porque o Hélder Costa não baixa os braços”, continua.

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Mas são os momentos de crítica social e política que mais povoam as cerca de duas horas e meia de Revista é sempre Revista. Aliás, a declaração de intenções é feita logo nos primeiros minutos: “uma piada, uma alfinetada, nada fica por dizer”. E Filipe La Féria, que não se cansa de sublinhar que não tem apoio do Estado (o apoio à produção é anunciado antes mesmo de o espectáculo começar, em que duas mãos cheias não chegam para contar os nomes de marcas, hotéis, bancos ou cabeleireiros mencionados), acredita que a revista é o espaço onde ainda se pode dizer tudo. Ou assim parece, quando um enorme retrato de António Costa rompe em palco. Minutos depois, óculos com lentes estampadas com o símbolo do Partido Socialista permitem que as personagens vejam “riqueza, abundância e justiça”. Se em tempos a revista fazia o malabarismo de veicular as suas mensagens como metáfora, nas entrelinhas, agora ei-las como manchete.

A inflação, o aumento do preço da gasolina, da prestação do banco ou da pasta dos dentes levam uma actriz a entoar: “Portugal, onde irás parar?”. “O teatro tem essa comunicação com o público, tem a obrigação de o acordar”, atenta La Féria. Esse número, no qual uma mulher se confronta com o preço de todos os ingredientes que precisa para fazer o jantar, garante o encenador, tem colhido reacções do público nas antestreias. “A vida está caríssima. Os portugueses começaram a viver mal. As pessoas reagem de uma forma... Riem, mas, como digo, o riso também mostra os dentes que mordem.”

“Passaram 40, 50 anos desde os textos e percebemos que há muita coisa que está na mesma”, diz-nos João Frizza, actor que desde 2018 colabora com La Féria na dramaturgia dos espectáculos. “A crítica política continua a ser a mesma”, garante, mas há que mantê-la numa linguagem próxima e… La Féria. O que é isso? “Torná-la actual, a revista está em constante mutação. O Filipe chega aqui todos os dias e diz ‘hoje diga aquilo assim’, está sempre atento às notícias. No humor, os assuntos, quanto mais frescos são, mais conseguimos captar o público.”

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Há uma fórmula de sucesso que, depois de surgir em Espero Por Ti no Politeama (2021), volta à cena. É um número que mistura fado e futebol, colocando três fadistas a torcer por cada um dos três grandes. O sketch teve uma "grande receptividade do público”, recorda João. “Estava a decorrer o Euro, na altura, e todos os dias mudávamos a letra a favor do que tinha acontecido.” Desta vez, na falta de um número “semelhante a nível de ritmo e popularidade”, recuperaram as fadistas. Os temas são outros, mas as inspirações mantêm-se: Frizza lembra Maria da Fé ou Lenita Gentil, Filipe de Albuquerque evoca Beatriz da Conceição, e Fernando Fernandes (FF) em tudo se parece com Ana Moura – e nem falha a recém-nascida Emília.

“É uma brincadeira com pessoas de quem gosto muito”, suaviza La Féria. “É preciso nesta vida, mesmo molhados, mesmo com água até à cintura, rir.” É nesse limbo entre a vertigem para o abismo e a força gargalhada que La Féria se move, com versos que soam a poema, como “o teatro é uma luta”. Para o encenador, a arte, e as artes cénicas em particular, continua a ter esse papel de contrapoder. “A arte põe sempre em dúvida o que está estabelecido, o poder que quer muitas vezes apoderar-se da arte. Sempre fui um bocado enfant terrible, interpreto a arte como um grito de revolta. Em todos os meus espectáculos, mesmos os mais ligeiros. A arte está sempre ao lado das pessoas que sofrem, dos mais frágeis. E quer sempre dar o seu contributo. Um espectáculo, mesmo um espectáculo ligeiro como é o Revista é Sempre Revista, também tem que ter uma mensagem para o público pensar.”

Teatro Politeama (Lisboa). 15 Dez-22 Jan. Qua-Sex 21.00, Sáb 17.00, 21.00, Dom 17.00. 10€-35€

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