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Os bairros podem ser feitos de coisas palpáveis, entre as paredes dos edifícios ou os espaços verdes, mas também se fazem de sentimentos. Sejam de pertença, de amizade, vizinhança ou companheirismo (estamos só a destacar as coisas boas, vá). E são mutáveis, acusam o passar do tempo, entre transformações sociais, degradação ou melhoria do espaço público, partilhado e vivido.
No recém-reabilitado logradouro entre a Rua Antónia Pusich e a Rua João Lúcio é apresentado a 15 de Setembro o livro Paredes Meias, uma publicação que faz um mapeamento do Bairro das Caixas, através de testemunhos de moradores e do olhar das autoras do livro, que com esta iniciativa querem valorizar o património urbanístico de Alvalade e promover o espírito de comunidade dentro do bairro. Marta Almeida Santos, Carolina Neto Henriques, Catarina Reis e Raquel Montez são os nomes que ajudaram a dar vida às páginas deste livro e também à história deste bairro tão peculiar, um microcosmos dentro da cidade.
Foi assim que aconteceu
No dia 5 de Julho de 1945, o Diário de Lisboa anunciava na primeira página “uma grande obra social” que iria construir 15 mil habitações de rendas acessíveis numa “nova zona” da cidade, erguida pelo município, numa área com mais de 200 hectares. Estava a nascer Alvalade, na sequência do crescimento populacional da cidade, um projecto que teve origem no chamado Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro (hoje Avenida do Brasil) que previa um conjunto urbanístico composto por oito células com diversas tipologias, cores e arquitecturas, entre apartamentos e moradias. “Uma pequena e alegre cidade, elegante, simpática, com ar lavado e feliz”, lia-se no Diário de Lisboa, com casas de renda económica, largas ruas e avenidas, jardins, escolas, igrejas, campos de jogos e mercados, entre outras valências. A Célula I, financiada então pela Federação das Caixas de Previdência, é pontuada por bastantes logradouros no exterior e é hoje conhecida como Bairro das Caixas, ao qual se dedica este novo livro, por iniciativa de Marta, moradora do bairro que acompanhou a recente reabilitação de um dos muitos logradouros do bairro.
Logradouro à vista
Este é um projecto muito pessoal para Marta Almeida Santos. Afinal foi ela a grande promotora de Paredes Meias, por ter acompanhado desde o início – como moradora – a reabilitação do logradouro entre a Rua Antónia Pusich e a Rua João Lúcio. Quando se mudou para o bairro, há quatro anos, conta que o logradouro tinha entulho, lixo, gatos vadios e algumas construções ilegais. Mas por muito que até apreciasse uma certa “natureza selvagem” paredes meias com a sua habitação, ganhou vontade de “começar a pôr ordem no espaço”. Entrou em contacto com a Junta de Freguesia de Alvalade, mas um plano já estava em marcha: em 2016, a Junta arrancou com um projecto de intervenção para um conjunto de logradouros escondidos entre os condomínios do Bairro das Caixas. Primeiro nas envolventes das escolas básicas Santo António e dos Coruchéus, e nos anos seguintes com a requalificação dos que ficavam nas traseiras da Rua Afonso Lopes Vieira, onde foram recuperados os espaços verdes e foi criado um parque hortícola, caminhos pedonais e estacionamento ordenado para moradores. A reabilitação deste logradouro ficou recentemente concluída – mas não livre de polémica, num processo cheio de tensões, já que ao longo dos anos muitos moradores se foram apropriando deste espaço, criando hortas com água das suas próprias casas e erguendo, por exemplo, anexos de apoio à miniprodução agrícola.
Marta, designer e técnica de comunicação, propôs à Junta de Freguesia a concretização de um livro que mapeasse as histórias do bairro onde reside há quatro anos e onde se sente em casa e “parte da família”. Neste projecto, é responsável pela coordenação editorial, entrevistas, transcrição e design gráfico, numa edição que inclui dois ensaios críticos (sobre temáticas como as “práticas autónomas de cidadania e a relevância dos espaços verdes em contexto urbano”) e um ensaio visual que retrata o processo de requalificação do logradouro, que ganhou zonas verdes e de estadia, parque infantil, pomares e hortas comunitárias. Para isso, convidou mais parceiras para o projecto. Como Catarina Reis, formada em Arquitectura de Interiores e Reabilitação do Edificado (FAUL) e autora do projecto de doutoramento Ecologia e Arquitectura num Território Pós-Humano – O muro como elemento arquitectónico de mediação ecológica (ISCTE-IUL); Carolina Neto Henriques, doutoranda em Estudos Urbanos (ISCTE-IUL/FCSH-UNL) e investigadora bolseira no DINAMIA'CET-IUL; e ainda a fotógrafa e artista visual Raquel Montez. O livro inclui ainda testemunhos de seis moradores do Bairro das Caixas, todos com uma percepção diferente da vivência no bairro, já que as datas de antiguidade de cada um dos moradores divergem em dez anos.
Esta, que também é uma “história de apropriação”, assinala a reabilitação dos logradouros do Bairro das Caixas como ponto de viragem (ou retorno) na paisagem social ou mesmo um regresso à ideia inicial de apropriação destes espaços de convívio por toda a comunidade. O livro será de distribuição gratuita e só terá de o solicitar na Junta de Freguesia de Alvalade, seja ou não freguês do Bairro das Caixas.
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