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Miguel Dores: “O Estado contribui para a escalada do racismo”

O antropólogo Miguel Dores relembra Alcindo Monteiro num documentário sobre um dos mais dolorosos “traumas” da cidade de Lisboa.

Sebastião Almeida
Escrito por
Sebastião Almeida
Antropólogo, Miguel Dores
©Mariana Valle LimaO antropólogo Miguel Dores decidiu dedicar a tese do mestrado ao homicídio de Alcindo Monteiro
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Português de ascendência cabo-verdiana, Alcindo Monteiro, 27 anos, foi espancado até à morte por um grupo de skinheads na Rua Garrett, ao Chiado. O crime perpetrado na noite de 10 de Junho de 1995, Dia de Portugal, fez esta quinta-feira 26 anos. Há dois, quando decidiu fazer desse homicídio o tema da dissertação de mestrado em Antropologia Visual, Miguel Dores não esperava que a violência racial e o racismo voltassem a ser assuntos tão prementes na sociedade portuguesa. A morte do jovem barreirense “continua a ser um trauma para a cidade de Lisboa, mas também uma memória muito importante para a história recente do anti-racismo e do antifascismo”, diz o antropólogo de 30 anos.

Inicialmente, a ideia era fazer um estudo audiovisual sobre o caso. Mas Miguel Dores foi aprofundando mais e mais o trabalho, que se foi transformando num documentário: Alcindo. O filme ainda não tem estreia agendada. Encontra-se em fase de montagem e de pós-produção, depois de o projecto ter alcançado, em Maio, a meta de dez mil euros de financiamento colaborativo através da plataforma PPL, o que permite a sua viabilidade.

Voltemos ao princípio: 2019. É o ano em que três afrodescendentes passam a ter um lugar de destaque na política nacional – Romualda Fernandes (Partido Socialista), Beatriz Gomes Dias (Bloco de Esquerda) e Joacine Katar Moreira (Livre) são eleitas para o Parlamento. Mas é também o ano em que André Ventura (Chega) aporta em São Bento e em que, segundo Miguel Dores, se nota um “abundar de narrativas racistas no espaço público”.

É nesse contexto que o filme começa a ser pensado, com ajuda da etno-psicóloga Beatriz Carvalho e do cineasta Filipe Casimiro. Alcindo é o ponto de partida para um exercício documental que “aborda uma fase preliminar do que aconteceu antes dessa noite e o que ela faz surgir na sociedade portuguesa”. É através da história de Alcindo que outros episódios de violência e ódio racial, como as mortes de Luís Giovani e de Bruno Candé ou a detenção violenta de Cláudia Simões (todos ocorridos em 2020), são revisitados. O documentário socorre-se dos arquivos de jornais e televisões sobre a morte de Alcindo, mas também do testemunho de pessoas que “tiveram uma articulação orgânica com o caso e que falam dele sem ser em abstracto. Pessoas que tiveram uma ligação ao seu trajecto de vida, desde logo familiares do Alcindo, ou José Nabais, advogado do caso”, adianta Miguel Dores.

Para o antropólogo, o crime de que Alcindo foi vítima representa o agudizar de uma série de acontecimentos perpetrados por etno-nacionalistas e antigos membros do Movimento de Acção Nacional, uma organização nacionalista criada em 1985 e extinta em 1991. “O primeiro momento mais destacado foi a morte de José Carvalho, em 1989”, recorda. O militante do Partido Socialista Revolucionário, conhecido como Zé da Messa foi esfaqueado a 28 de Outubro desse ano, à porta da sede do partido, na Rua da Palma. Segundo dados veiculados por Miguel Dores, entre 1989 e 1995, “a SOS Racismo conta cerca de 60 ataques racializados levados a cabo por etno-nacionalistas. São mortas oito pessoas negras nesses anos, não se sabendo bem as circunstâncias dessas mortes”, refere, para sustentar a tese de que a morte de Alcindo Monteiro “não é um caso isolado”.

“É uma escalada para a qual o Estado contribui. Trata-se de um processo social”, diz. Aos olhos de Miguel Dores, há vários factos importantes de assinalar. “Em 1993, o Serviço de Informações de Segurança emite um comunicado a dizer que a principal causa do aumento da criminalidade eram os jovens negros; Manuel Dias Loureiro [à altura ministro da Administração Interna] tem uma espécie de cruzada contra os imigrantes ilegais e diz que a imigração é igual a subúrbio e que o subúrbio é igual a crime; em 1995, Mário Soares [então Presidente da República] apoia o exército num evento feito no Memorial dos Combatentes, no próprio dia da morte do Alcindo, que basicamente se torna numa parada colonial.”

No filme, que deverá ser exibido publicamente pela primeira vez em Outubro, o antropólogo e a equipa tentam não se concentrar nos agressores, nem isolar o caso de Alcindo. “Fazemos uma abordagem de como é que estes gestos racistas são consubstanciados ou promovidos a partir de uma agenda institucional e estrutural.” Miguel Dores pretende mostrar, através do documentário, como vários elementos sociais se articulam entre si e como não são “gestos de normalidade social, mas de algum modo são consubstanciados por um discurso de nação”. “O filme tenta direccionar para aí as atenções.”

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