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Nas costas da Vila Berta, bairro da Graça, há um conjunto de oficinas e estúdios onde trabalham desde profissionais das plantas até gente do marketing. Num dos lugares de estacionamento, em vez de um carro há uma mesa de esplanada, com as respectivas cadeiras e guarda-sol. “É simbólico”, começa por dizer Adam Tranter, ex-comissário para a mobilidade pedonal e ciclável na região de West Midlands, no Reino Unido, que decidiu trocar por Lisboa há um ano.
No estúdio onde Tranter trabalha, há designers, comunicadores, gestores de projectos. As áreas podem até ser longínquas, mas uma coisa os une: o gosto e a defesa das bicicletas. É por isso que não há carros à porta e que, acima de tudo, estão a criar o Andamento, um espaço onde a comunidade se possa encontrar, discutir ideias, formular projectos passíveis de serem apresentados ao poder político, mas também consultar a pequena biblioteca dedicada à cultura da bicicleta que está a ser montada (começando pelas doações da cooperativa de educação Bicicultura) ou ver uma exposição de posters e fotografias antigas do metro. Por que não? “Há muitos grupos e movimentos ligados às bicicletas. As pessoas têm muito a dizer, a reclamar, estão chateadas, algumas deprimidas até. Mas muito disso acaba em grupos de Whatsapp”, analisa o responsável, defendendo, por isso, que “é importante haver uma casa para as coisas”.

A ideia do Andamento é haver uma mesa sobre a qual se possa desdobrar um mapa da cidade de Lisboa, olhar para ele, marcar linhas sobre o que falta e que está a gerar dificuldades na mobilidade, e procurar propostas sólidas. “Por que não se colocam cadeiras de transporte de criança em algumas Gira?”, ouve-se na sala. Havendo Andamento, a ideia não morreria na estratosfera nem no lixo digital. Seria trabalhada, sobre ela seriam feitos cálculos, planos, posters e propostas. “É preciso profissionalizar a área, fazer com que o assunto tenha presença nos media”, criar pressão. “Não queremos só estar no mundo instantâneo de hoje, queremos que as coisas fiquem”, afirma o britânico.


Embora ainda mal tenha começado a andar (a página do Instagram é lançada enquanto a Time Out escreve este texto), Adam Tranter conta que, mal partilhou com outros colectivos que se estava a criar este espaço físico, começaram logo a surgir propostas para reuniões e formações de quem não tinha onde juntar pessoas. A MUBi - Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta foi uma das primeiras interessadas.
390 mil carros por dia
Em Lisboa, avalia Adam Tranter, a situação para a mobilidade ciclável é “difícil”, sobretudo porque há “muitas iniciativas suaves, mas infraestrutura insuficiente”. Se por um lado seria preciso criar mais rede — ciclovias na Avenida da Liberdade, como sugere o colectivo —, por outro, há a necessidade de desobstruir a cidade de automóveis, trocando-os por meios mais sustentáveis e muitas vezes mais eficientes, coisa que não está a acontecer.

Nos últimos anos, há mais pessoas a andar de bicicleta, mas também cresce o número de automóveis a entrar todos os dias em Lisboa. Serão 390 mil actualmente, mais 20 mil do que em 2017. “Quase todas as entradas na capital estão agora mais entupidas, mas os maiores aumentos são na Ponte Vasco da Gama, IC16 e A8 — os acessos usados por quem fugiu de Lisboa para a Margem Sul, Loures, Odivelas ou região Oeste à procura de casas e rendas mais baratas”, escreveu o jornal Expresso em Maio, dando conta do fenómeno.
Embora o movimento de ascensão do automóvel esteja contra a corrente europeia, Adam Tranter acredita que Lisboa tem factores de peso para estar entre as cinco cidades mais “bici” da Europa: é uma cidade de pequena dimensão, com um urbanismo facilmente moldável à circulação sobre duas rodas (sem motor, claro); os rendimentos da população são maioritariamente baixos; e os transportes públicos estão sobrelotados, não sobrando grandes alternativas. A bicicleta surge, assim, como “o meio de transporte mais democrático”. E isto não é uma utopia, avisa o responsável. Basta olhar para cidades como Barcelona, Gent, Amesterdão ou Paris. “A mudança, aqui, já devia ter acontecido há 50 anos, mas, não tendo acontecido, pode acontecer agora. Tem é de se fazer as coisas de forma diferente.”
A impopularidade e os bairros históricos
É comum o argumento de que os portugueses estão demasiado presos ao automóvel e que, por isso, fechar ruas ao trânsito ou retirar-lhes protagonismo seriam medidas políticas impopulares. Mas não é impopular ter os transportes públicos constantemente a incumprir horários porque a cidade está congestionada?, questiona Adam Tranter, lembrando que, há algumas décadas, também o Terreiro do Paço era um parque de estacionamento e hoje “ninguém diz que tem saudades daquela praça onde se podia pôr o carro”. Impopular, em suma, é ter uma cidade que não funciona.
“Do ponto de vista económico, o congestionamento de uma cidade custa dinheiro. Eu, que ando de bicicleta, nunca estou preso no trânsito! Fará sentido as pessoas terem de acordar mais cedo para não apanharem a hora de ponta? Ou saírem à noite e terem de ir para casa antes que feche o metro? Ou as crianças não poderem circular sem a companhia de um adulto? O grande factor de receio dos pais, no espaço público, são os automóveis”, enumera o co-fundador do Andamento.

Outros argumentos anti-bicicleta comuns em Lisboa assentam na orografia da cidade ou nos desenhos de passeios estreitos junto a carris dos eléctricos, nas zonas históricas. A isso o responsável contrapõe que a maior parte da cidade é plana e que os bairros históricos deveriam ser vistos como os mais indicados para ciclistas, uma vez que na sua génese está o pensamento no peão e não no automóvel.

É uma questão de coexistência no espaço, afirma Adam Tranter, para quem o grande potenciador de perigo para o ciclista numa artéria, por exemplo, como a Rua da Graça, onde passa o eléctrico 28, não é a possibilidade de deslize do pneu no carril, mas sim a necessidade de atenção simultânea aos carris e às manobras do trânsito automóvel, que ocupa sempre mais espaço.
Mitos desfeitos, pelo menos para quem quer Andamento, resta dizer que tudo isto é cíclico. “O futuro não será com carros voadores. Vamos voltar onde já estivemos, a querer andar a pé, de bicicleta, ao mais simples”, acredita Adam Tranter. Talvez o regresso tenha futuro.
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