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"Quem é que aqui sabe andar de bicicleta?" 80% colocam o dedo no ar. A maioria tem seis anos, frequenta a Escola Básica Pintor Almada Negreiros, na Musgueira (Alta de Lisboa), pelo que a resposta geral é surpreendente, até que a formadora percebe que tem de ser mais clara: "Mas sem rodinhas...?" Quase tudo baixa o braço, sobram seis. Avancemos. É a primeira e única vez que a turma vem à Escola de Trânsito do Parque Recreativo do Alto da Serafina, em Monsanto, para aprender a andar de bicicleta. "São sessões únicas, até porque este espaço não é nosso e portanto não está sempre disponível", afirma Joana Cascais de Freitas, coordenadora do Pela Cidade Fora, projecto da Emel que abrange perto de 50 escolas de Lisboa. Havendo outra regularidade, o resultado seria melhor, acredita, mas aprender a andar de bicicleta "é muito rápido". "Daqui a uns minutos vai ver como estão todos aí a andar", assegura a responsável.
Numa manhã que começa pela componente teórica em sala de aula – das cores dos sinais de trânsito aos direitos e deveres do peão – e depois passa para o terreno, as crianças familiarizam-se com conceitos de segurança ou equilíbrio. Assim que passam para as bicicletas, dividem-se: um pequeno grupo, de seis, fica no circuito sinalizado – espécie de mini-cidade onde há semáforos, uma rotunda e faixas de rodagem –, enquanto a maioria segue para um terreno amplo, pronta a treinar o equilíbrio, no célebre "olha para a frente se não cais".

A meio da sessão prática, orientada de forma dedicada por monitores, confirma-se o previsto: já quase todos se aguentam sobre as bicicletas, a pedalar, e passam para o circuito mais à frente. "Seis anos é a idade ideal para aprender, porque ainda não têm os medos todos instalados. Quanto mais para a frente, mais se torna uma questão de cabeça", explica a responsável.

A iniciativa Já Sou Ciclista é uma das muitas actividades da Emel no âmbito da promoção da mobilidade activa das crianças. "Com as mais novas, podemos fazer actividades tão simples como desenhos, em que cada uma mostra em que transporte vai para a escola. Com as mais crescidas, programamos um circuito de transportes públicos, para que aprendam regras como passar o passe ou que primeiro têm de deixar as pessoas sair e só depois é que entram. Parecem coisas básicas, mas já tivemos um miúdo no 7.º ano que vive em Lisboa e que nunca tinham andado de metro", dá conta Joana Cascais de Freitas, sublinhando que grande parte das crianças "vai de automóvel particular para a escola".
Saber sim, andar nem por isso
Muitas vezes, o meio de transporte tem a ver com a morfologia dos bairros, outra com as classes sociais ("nos extractos mais baixos é mais comum as crianças saberem andar", nota a coordenadora). Quanto a ir de bicicleta, só mesmo uma minoria. "Em bairros históricos, por exemplo, torna-se muito difícil deslocarem-se de bicicleta para a escola." Os passeios estreitos, os carris do eléctrico e a promiscuidade com o trânsito automóvel tornam difícil a convivência saudável com os ciclistas menores.
Lisboa é, aliás, a segunda pior cidade da Europa para crianças andarem a pé ou de bicicleta, de acordo com uma análise recente da Clean Cities, que comparou 36 cidades europeias. Com zero "ruas escolares" (vias junto a escolas em que a circulação é interdita a veículos motorizados), muitas áreas em que o limite de velocidade não torna possível o convívio com bicicletas ou a falta de ligações entre ciclovias, aprender a andar de bicicleta na escola, em Monsanto ou em pequenos grupos de bairro não é difícil. De comboios de bicicleta ao protocolo da Câmara Municipal de Lisboa com as escolas do ensino básico, passando por massas críticas como a Kidical Mass ou projectos como a Bicicultura, Tia Bina ou o Vamos Pedalar, em Arroios, não faltam estímulos. Mas depois apagam-se com os entraves da cidade.

"Já sabemos que uma cidade boa para as crianças é boa para os adultos", lança Rita Fernandes Ferreira, que começou o movimento Kidical Mass em Portugal, há quase 10 anos, depois de muitos outros como activista da mobilidade suave, dentro e fora de casa. Na Lisboa dos anos 90, depois de uma temporada em Barcelona, Rita começou a deparar-se com "as dificuldades de andar de bicicleta na cidade", no dia-a-dia. Quando a filha fez 10 anos, achou que era altura de ser mais activa e começou a montar bancas sobre mobilidade sustentável, a envolver pais e professores nesta ideia de usar a bicicleta na maioria das deslocações urbanas. "Ainda tive uns bons conflitos com alguns pais, para quem perderem três minutos dentro do carro para deixarem passar um comboio de bicicletas à porta da escola era um problema", conta à Time Out.
Da infra-estrutura à mentalidade
Em 2016, conheceu o movimento alemão Kidical Mass (várias famílias juntam-se num percurso de bicicleta em ambiente seguro, acompanhadas pela polícia) e, no ano seguinte, trouxe-o para Portugal. Hoje há 40 grupos que dão passeios colectivos em bicicleta, envolvendo um total de 553 pessoas. "Somos poucos", reconhece Rita Ferreira, que acredita que o número poderia crescer "se houvesse mais infra-estrutura". "Em Lisboa, faltam ciclovias principalmente nas grandes avenidas, onde, aliás, já morreram pessoas", assinala, questionando: "Como andar na cidade sem uma ciclovia na Avenida na Índia, na Avenida de Roma ou na Mouzinho Albuquerque?" Mais difícil ainda com crianças e ainda pior se forem sozinhas, "quando ainda têm uma atracção pelo risco", considera Rita.

Com o investimento em ciclovias e "cada vez mais gente a andar de bicicleta", a cidade "mudou muito" nos últimos anos. Mas, além de criar mais vias próprias para pedalar e limitar a velocidade dos automóveis em mais ruas, "é preciso mudar hábitos", defende a mobilizadora. "E isso tem de ser feito com as crianças e os jovens, através da educação, se não nada muda", acredita, dando o exemplo dos jovens universitários: "Se eles hoje forem de bicicleta para a universidade, quando forem pais, uns anos mais tarde, vão querer continuar. Não vão querer voltar para o carro."
Depois, é preciso envolver entidades públicas. "Uma vez fizemos uma Kidical Mass na Penha de França e foi uma aventura. Queríamos mostrar que não havia condições para a mobilidade suave na freguesia e, nessa altura, junto com a Mapear, falou-se com a Junta, com a Emel porque ainda não tinham chegado as Gira, enfim, com várias entidades... Tem de se fazer esse trabalho", reconhece. Também o projecto Bloomberg, para as ligações da rede de ciclovias a 120 escolas, "foi muito ajudado pela Kidical Mass", acrescenta a responsável.
A escola como rastilho
Foi precisamente a segurança na envolvência das escolas o tema escolhido este ano pela Associação para a Promoção da Segurança Infantil (APSI) para assinalar o ainda informal Dia Nacional da Segurança Infantil, a 23 de Maio. "As pessoas acham que em termos de segurança evoluímos muito, e até é verdade, mas este é um problema que está longe de estar resolvido. E este ano quisemos desmistificar a ideia de que a segurança é ter as crianças fechadas numa redoma, sem poderem andar a pé ou de bicicleta", partilha a directora técnica da associação, Sandra Nascimento.
No dia 23, uma sexta-feira, o organismo conseguiu que quase 100 estabelecimentos de ensino transformassem as ruas em frente em "Ruas Que Brincam", isto é, fecharam-nas ao trânsito motorizado, durante um período limitado. "Conseguimos mostrar que, se quisermos, é possível fechar ruas para as crianças andarem de bicicleta, de skate, de patins ou jogarem à macaca. É que o que as impede de fazer isso é o medo que os pais sentem dos automóveis", explica a responsável, lembrando que, segundo o anunciado pela Junta de Freguesia de Arroios, Lisboa ganhará uma escola com uma rua segura: a Sampaio Garrido, nos Anjos, cuja obra de requalificação da Praça das Novas Nações já deveria ter sido concluída mas ainda não começou.

Não deixando frutos perenes, a iniciativa da APSI "ajuda a mudar o mindset, a que as famílias deixem de olhar para as ruas como um espaço exclusivo dos carros", acredita Sandra Nascimento, sublinhando que há muitas outras acções que podem ser feitas, desde restringir a velocidade da circulação automóvel a introduzir mudanças físicas que induzam comportamentos menos agressivos por parte dos condutores. "Está tudo estudado e sabemos os resultados, e as crianças são as primeiras a querer ir de bicicleta ou num autocarro humano para a escola. Agora, ainda é muito perigoso andar de bicicleta em Lisboa. Falta pôr o que sabemos em prática", remata a especialista.
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