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Ana LuziaMassa Crítica

Massa Crítica regressa ao Marquês pedindo mais espaço e voz na cidade

Retirada da ciclovia da Avenida de Berna e alegada falta de transparência da Câmara Municipal motivam ciclistas a voltar aos encontros mensais. “O nosso dever cívico não é só ir votar de quatro em quatro anos.”

Rute Barbedo
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Rute Barbedo
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“Venham para a rua!” É este o convite da Massa Crítica, um movimento informal, auto-organizado e independente que chegou a Lisboa há 20 anos, inspirado pelas acções que a cada semana levaram centenas de ciclistas às ruas de São Francisco (e mais tarde a dezenas de outras cidades do mundo) desde os anos 1990. A ideia é criar uma massa de ciclistas que reclama espaço e um modelo seguro de circulação não poluente na cidade. O primeiro encontro é esta sexta-feira, dia 24, às 18.00, junto à entrada Sul do Parque Eduardo VII, repetindo-se sempre na última sexta de cada mês. 

Em Lisboa, cerca de dez anos após a primeira saída da rotunda do Marquês de Pombal, o movimento chegou a compor-se de centenas de participantes. Mas nos últimos cinco, esmoreceu. “Apareciam uma ou duas pessoas”, não era uma massa, descreve à Time Out Ricardo Ferreira, utilizador diário da bicicleta. A pandemia contribuiu para o fenómeno, mas também “há quem diga que isto aconteceu porque a Massa Crítica [MC] já não era necessária, porque as coisas estavam a evoluir no bom sentido em Lisboa”. “Afinal, é preciso voltar”, tem a certeza Ricardo. “O nosso dever cívico não é só ir votar de quatro em quatro anos.”

O regresso tem justificação: há uma insatisfação crescente de quem usa a bicicleta como principal meio de transporte em Lisboa quanto à política pública na área da mobilidade. “Estamos a perder espaço e voz na rua. Temo-nos juntado apenas quando estamos prestes a perder ciclovias ou a nossa voz nas decisões públicas”, lê-se na página de Facebook do evento. Como defende Ricardo Ferreira (nunca na qualidade de porta-voz ou representante, sublinhe-se, já que não há hierarquias na MC), “o actual executivo [liderado por Carlos Moedas] é responsável por uma regressão relativamente ao passado, na direcção de uma cidade com mais carros”. “Começou com a promessa de retirar a ciclovia da Almirante Reis e isso ficou [gravado]. Não sei se por revanche, agora decidiu retirar a da Avenida de Berna. Era uma ciclovia que precisava de melhorias, sem dúvida, mas não se pode chegar lá e simplesmente retirar, por causa de lugares de estacionamento. Dizem que não querem avançar com ciclovias sem estudos prévios, mas não houve nenhum estudo para retirá-la. E esta é uma avenida larguíssima, não devia ser um problema”, diz.

Em Outubro, a ciclovia da Avenida de Berna começou a ser parcialmente desmantelada, com a Câmara Municipal de Lisboa (CML) a defender a obra pela insegurança da infra-estrutura e a permitir a reposição de 70 lugares de estacionamento, na sequência de uma negociação com a Junta de Freguesia das Avenidas Novas. A 17 de Outubro, uma primeira manifestação, de cerca de 150 ciclistas, ocupou a avenida. Dias depois, voltaram a insurgir-se, na rua e com uma queixa apresentada pelas associações MUBi e Zero, contra a CML, ao Ministério Público. “Esta acção viola o Plano Director Municipal (PDM), contradiz o MOVE 2030 e afasta-nos dos compromissos internacionais firmados pela autarquia”, consideram as organizações, que referem a circulação de quase 700 pessoas em bicicleta naquela avenida, por dia, e acusam a CML de “devolver estacionamento onde este não é permitido, não é necessário e não é recomendado”.

Manifestação pela Ciclovia da Avenida de Berna
DR/MUBiManifestação pela Ciclovia da Avenida de Berna

Herculano Rebordão, da MUBi, explica à Time Out que a falta de planeamento, de diálogo com a sociedade civil e de transparência quanto às decisões tomadas pela autarquia nas áreas dos transportes e da mobilidade estão na base da insatisfação de muitos utilizadores de bicicletas. “A Câmara fala em proximidade com os cidadãos, mas depois temos a sensação de que isso não acontece. Anunciaram recentemente [a 25 de Outubro, numa reunião pública da CML] novas ciclovias, mas não sabemos o que está a ser implementado efectivamente. Reunimos três vezes com a Câmara desde o início deste mandato. Queremos contribuir, dialogar, por isso, pedimos mais reuniões mas nunca mais nos responderam. E agora anunciam este plano, precisamente na semana em que houve a manifestação na Avenida de Berna. Para nós, foi uma surpresa completa”, diz. Ao mesmo tempo, a associação vê inconsistência entre o que a autarquia diz e o que faz, apelidando de “campanha de desinformação” a comunicação em torno do caso da Avenida de Berna.

Futuro pouco concreto

Quanto ao novo plano “dinâmico” (ou seja, que pode mudar) de ciclovias divulgado no mês passado pela Câmara, a intenção é criar 19 novos troços (num total de 17 quilómetros, incluindo a nova configuração da Avenida de Berna), novas zonas 30+Bici em 13 bairros (numa extensão de 58 quilómetros) e uma melhoria das ligações cicláveis às escolas. Em paralelo, prevêem-se 36 novas estações GIRA (e mais bicicletas), com o objectivo de expandir a sua presença a todas as freguesias da cidade.

No orçamento municipal para 2024, anunciado na semana passada, 14,3 milhões de euros destinam-se à mobilidade suave, ou seja, ao plano anunciado pelo vice-presidente, Filipe Anacoreta Correia. Mas nem os números nem os esboços dão confiança aos munícipes, analisa Herculano Rebordão. Por um lado, não há “compromissos de datas”. Por outro, não há esclarecimentos sobre o que está a ser feito (a Time Out pediu-os à CML mas ainda não obteve resposta). “O que me parece é que há uma manipulação a partir de palavras para fazer parecer que está a acontecer alguma coisa. Fala-se em ciclovias novas, mas são troços incompletos, ou seja, acrescentam-se uns metros à rede”, diz Ricardo Ferreira, da Massa Crítica, que aponta à cidade várias carências ao nível infra-estrutural, como o eixo (que já chegou a ser planeado) entre a Avenida dos Combatentes e a Cidade Universitária. Os ciclistas discutem, ainda, fenómenos como as ciclovias que terminam de forma abrupta (como na Praça de Londres) ou zonas de Lisboa que têm ficado, de forma persistente, fora dos planos, como Marvila ou Penha de França (com excepção da via ribeirinha que liga Santa Apolónia ao Parque das Nações). 

Apesar de [a Penha de França] ser uma das freguesias mais populosas, o cuidado com os modos ciclável e pedonal não tem sido uma prioridade nem por parte da Junta de Freguesia nem do executivo municipal”, partilha o colectivo Mapear, criado no início deste ano e que se debruça sobre a mobilidade activa e o espaço público nesta zona da cidade, em respostas por escrito à Time Out. Para este grupo informal, falta fazer praticamente tudo, quando comparamos com outras freguesias de Lisboa”, e “o automóvel continua a ter fatia de leão no espaço público”. 

A freguesia entra agora no plano apresentado pela Câmara, com uma nova ciclovia integrada nas obras de requalificação da Parada do Alto de São João, mas os contornos não são conhecidos ao detalhe. O que tem sido discutido é que esta nova ciclovia viverá apenas no interior da praça, sem conexão à rede. “Parece-nos que é uma aposta na mobilidade suave muito pouco séria”, aponta o colectivo, que, das reuniões com a CML, tem retirado uma sensação de falta de planeamento para o futuro ciclável da cidade. Como referem, há “algumas intenções ténues de criação de ciclovias em alguns eixos viários, contudo, parecem-nos ideias avulsas sem uma planificação rigorosa e devidamente calendarizada”. A Parada do Alto de São João é um exemplo, mas há outros.

Caos no trânsito, regressão na mentalidade

Para os entrevistados pela Time Out, a aposta na mobilidade suave não é apenas uma questão que diz respeito a quem anda de bicicleta, mas sim uma chave para melhorar a circulação em Lisboa. Como diz Herculano Rebordão, da MUBi, “a cidade está um caos em termos de trânsito e, se não se fizer nada para mudar isso, certamente vai piorar”.

A tensão na estrada e a falta de investimento na mobilidade ciclável estão a contribuir, ao mesmo tempo, para um ambiente mais hostil para o ciclista e a desencorajar, por isso, o uso da bicicleta. “O discurso deste executivo inclui a mobilidade activa, só que as acções são no sentido da utilização do carro. O retrocesso que sinto não é só ao nível das infra-estruturas, é também na mentalidade. Na estrada, sente-se mais agressividade e as pessoas continuam a parar o carro em cima das ciclovias, o Código da Estrada não é cumprido e não há fiscalização”, afirma Ricardo Ferreira, da MC. A falta de fiscalização, lembra a Mapear, já resultou em casos de mortalidade. 

Muito por este sentimento generalizado de insegurança, a criação de zonas 30+Bici não é vista como a melhor opção para tornar a cidade bike friendly, segundo a MUBi. Ainda assim, esta é a maior aposta actual da Câmara a cumprirem-se os planos, a rede ciclável aumentará em 86 quilómetros, sendo 58 dos quais zonas 30+Bici, ou seja, onde não há propriamente ciclovias mas sim uma sinalização e adaptação das condições de trânsito, numa convivência estreita com o automóvel. Na opinião da MUBi, este modelo “deve ser usado numa fase em que as pessoas já tenham adquirido maturidade no uso e na convivência com as bicicletas, o que não é o caso de Lisboa”. Também a Mapear deixa uma crítica sobre o tema: “Essa solução não resulta para aumentar o uso da bicicleta e, além disso, vai incomodar os opositores das ciclovias, que serão obrigados a partilhar o espaço com a bicicleta em eixos que sentem que deviam ser exclusivamente para o automóvel, gerando ansiedade e conflitos entre os vários tipos de utilizadores.”

O mapa ciclável está a ser desenhado desde 2016, quando o executivo de Fernando Medina anunciou que a cidade teria 200 quilómetros de rede. Hoje, Lisboa tem cerca de 150 quilómetros de terreno ciclável. Quem soma o presente aos planos do município observa, à primeira vista, uma mancha considerável destinada às bicicletas. Mas, desde a descontinuidade da rede à sobrelotação de alguns eixos (como o da Avenida da República), passando por vias construídas em cima dos passeios (que retiram espaço aos peões) ou pela interrupção constante do percurso nas intersecções com outras vias (levando a uma maior exposição ao perigo), os problemas apontados por quem recorre à bicicleta são muitos. Em suma, critica o Mapear, “não faz qualquer sentido que, em 2023, viver numa capital europeia implique arriscar a vida só por se optar por um modo de transporte económico, sustentável e não poluente”.

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