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O solstício de Inverno é o dia mais curto do ano. Não se pode dizer que é um dia pelo qual esperamos ansiosamente nos meses que o antecedem, ou que suscite um interesse especial. Afinal de contas, acontece todos os anos. Mas, lá para Setembro, quando o tempo muda, e o vento e a chuva começam a dar o ar da sua graça, as horas de sol diminuem e este dia deixa de estar tão longe. Com ele, pode chegar a depressão sazonal, a melancolia de quem não quer deixar os raios de sol para trás, e a vontade de voltar ao Verão, quando os dias pareciam não ter fim. O solstício de Inverno pode trazer isto, mas, por outro lado, também traz uma certa esperança. Desde a pré-História, são várias as culturas com celebrações e ritos em torno deste dia, habitualmente associados ao renascimento e ao triunfo da luz sobre as trevas. E faz-nos pensar. Por muito que a noite pareça longa e que a escuridão se abata pesadamente sobre nós, talvez baste esperar pelo que virá a seguir e, acima de tudo, imaginar. Perante o desconhecido, a imaginação pode ser a nossa melhor amiga.
Guilherme Gomes chega ao centro da sala com um banco e um saco de rede com coisas nas mãos. Ele é o encenador, mas hoje um dos actores principais não está presente, por isso, faz ele a vez de Diogo Dória. Estamos no salão da Sociedade Filarmónica União e Capricho dos Olivais, mas Guilherme põe-se em frente ao mar e recorda os tempos em que o enfrentou com o irmão Mário que, como ele, era pescador. Numa dessas idas para alto-mar, este morreu e agora é com quem ele fala. O seu luto, se é assim que o podemos chamar, toma várias formas e uma delas é esta.
A inspiração para a peça partiu de vários lugares. Por um lado, do Telefone do Vento, uma cabine telefónica, desligada da rede e construída por Itaru Sasaki, em Õtsuchi, que servia para que os sobreviventes do tsunami que arrasou a cidade japonesa, em 2011, pudessem falar com familiares e amigos que tinham morrido. Por outro, da ideia de que o Inverno está associado à morte, o que levou o dramaturgo a Trás-os-Montes, onde as festas tradicionais de Vinhais, ligadas à religião e a crenças pagãs, também o remeteram para a morte, a vida e o luto. “Por uma série de acasos, eu fui parar a Trás-os-Montes durante um mês. Estive lá a viver e falei com a malta que faz as festas e quis ir às festas, mas chegava sempre ou antes, ou depois. Então, assisti sempre à preparação e ao desmanchar e, nesta lógica de fronteira, tornou-se claro este processo de imaginar, construir, não ir à cabine, mas construir a própria cabine. E começou a surgir este espectáculo, que acaba por ser muito sobre o processo de imaginação, mais do que peregrinação à cabine telefónica”, conta Guilherme.
De facto, e apesar de andarem lado a lado, a peça fala-nos mais acerca da imaginação e da vida do que sobre a morte, ou o processo de luto. Em palco, algumas das personagens também fazem conta disso, como é o caso de dois arlequins, uma Pierrot e ainda uma mulher que lembra uma sevilhana, vestida de folhos e de sapatos de saltos. Desta forma, revela-se a vontade de mostrar o teatro na sua “função quase redentora com a morte”. “E não sei se o teatro não é um bocado isto. Se não serve um bocado para nos lembrar da vida, remeter para a vida e não o contrário. E sempre que uma pessoa entra e sai de cena, de certa maneira, quando sai de palco, morre um pouco. É um bocado como o nascer e o fim do dia”, reflecte.
Neste sentido e perante a ideia de solstício de Inverno como um “dia de revolução”, Guilherme confessa que o espectáculo ressoa em si. Em palco, este dia é bem-vindo, porque pode vir depois do luto a que nos prestamos, em que “esta vontade de vencer as trevas pode ser sobre outras coisas que não o luto de alguém que desapareceu ou morreu”. E outra das leituras que fica para ele é a inevitabilidade do dia mais curto do ano – “Os ciclos merecem ser aceites e acolhidos e não os devemos contrariar. Mas, na mesma lógica, as coisas são só más, como uma noite imensa pode ser má, se não cuidarmos delas, se não estivermos atentos a elas.”
A presença de determinados elementos, como uma banda sinfónica, reside num lugar de nostalgia pessoal que pretende remeter o público para um contexto específico. Ao longo da peça, ouvimo-la, quer seja através de um gramofone ou de outros meios, e imaginamo-la, até que no fim ela aparece em palco. Elementos como este fazem parte do imaginário colectivo do público português e, por isso, espera-se que este não fique indiferente. No texto, há, por exemplo, alusões a incêndios que, tendo em conta o contexto actual do país, terão de certo um impacto maior no público. "Os incêndios, como o mar, fazem parte do imaginário da morte, destruição, desamparo e do luto português. A verdade é que faz parte da nossa experiência de luto colectiva e, por isso, é impactante agora estar a fazer os ensaios e ouvir estas palavras, porque não estavam a ressoar desta maneira quando estávamos a ensaiar há uns tempos", continua Guilherme.
Quando o pano se levanta, é a noite que se apodera dos alerquins, da Pierrot, da sevilhana e do pescador. Em busca da cabine telefónica, a sua viagem faz-se caminhando e imaginando, e quando chega ao fim a cabine está lá à sua espera, enquanto o sol se prepara para nascer.
Culturgest. 26-28 Set. Qui-Sex 21.00, Sáb 19.00. 14€
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