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Formiga Atómica
Nuno Marques/DR

Num mundo em crise, o teatro também precisa de incomodar as pessoas

A Formiga Atómica faz dez anos em 2024. O próximo espectáculo é sobre a emergência climática e está a ser construído em movimento.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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São dez da manhã, o dia começa na estrada, com pastéis de Belém e café em copos de papel. Temos umas horas de avanço em relação ao primeiro compromisso da Formiga Atómica, que nos últimos meses já fez mais de 8365 km. Acompanhados por uma equipa de seis a 14 elementos, Miguel Fragata e Inês Barahona – que fundaram a estrutura em 2014, um ano depois da estreia de A Caminhada dos Elefantes, peça ainda hoje a circular em quatro línguas – encontram-se mais uma vez a percorrer o país de lés-a-lés na esperança de descobrir o que, perante um possível naufrágio da humanidade, todos temos em comum (instinto de sobrevivência?). É esse o ponto de partida para o próximo espectáculo, que deverá estrear-se em 2024, ano em que se assinala o 10.º aniversário da companhia.

“Ainda a ser construído, Terminal (O Estado do Mundo) é a segunda parte de um díptico, que iniciámos em 2021 com O Estado do Mundo (Quando Acordas) [uma co-produção com o LU.CA, a associação Comédias do Minho, o colectivo Materiais Diversos e o parisiense Théâtre de la Ville], onde fabricávamos enormes catástrofes naturais à escala de miniaturas, através de objectos do dia-a-dia. Esse é considerado para a infância [a partir dos seis anos] e este é dirigido ao público adulto, embora, na verdade, não pensemos nesses termos – criamos para todos e acreditamos que o teatro, na sua relação com o mundo, é capaz de desfazer essas barreiras”, diz Miguel Fragata, enquanto nos guia até Setúbal. Inês Barahona segue noutro veículo, e vamos comunicando por telefone, à medida que evitamos o trânsito causado por mais uma greve de comboios. Desde o início de 2023 que a Formiga Atómica já testemunhou cerca de 70 e, se por um lado, a ferrovia é um dos instrumentos mais eficazes para a descarbonização, por outro Portugal tem décadas de desinvestimento para reverter. “Só é possível chegar de comboio a três dos 17 sítios por onde passámos”, revelam-nos.

A pesquisa está na génese da Formiga Atómica — que circula regularmente por território nacional e internacional –, mas desta vez fez-se questão de partir verdadeiramente de uma lógica local e pessoal, que permita perceber como é que, nas suas múltiplas diversidades, o país olha para a crise climática. De Setembro a Dezembro, ainda têm oito paragens para fazer: Torres Novas, Aljezur, Monchique, Odemira, Portalegre, Portel e até São Miguel, nos Açores. O trabalho, em territórios de naturezas contrastantes, tem posto em evidência ligações globais, unindo por exemplo as vidas intensas nas cidades ao esvaziamento de aldeias esquecidas. O fio condutor para todas as descobertas, que vão alimentando o processo de criação, tem sido a programação itinerante que desenharam para este ano. “Queríamos muito entrar em desaceleração, ou seja, estar dedicados a um único projecto, ainda que com inúmeras iterações.”

Formiga Atómica
Nuno Marques/DR

Feitas as contas, as diferentes actividades que têm vindo a promover já resultaram em seis debates com recurso à Biblioteca Verde (que construíram só com títulos ecologistas), oito curtas documentais (num confronto entre a memória de quem viveu determinado lugar e a realidade de hoje), 24 entrevistas (em cada uma delas, sem se verem, duas pessoas conversam a partir de um conjunto de questões sobre a humanidade, a vida, a sociedade, a política ou o clima), 27 horas de ocupação de emissões radiofónicas locais (com a “Ambientalista Imperfeita”, Joana Guerra Tadeu, no comando), mais ao menos 166 apresentações de Teatro Fora de Formato (como quem diz, fora do seu edifício convencional e sem aviso) e um total de 358 questionários, preenchidos no âmbito de um estudo levado a cabo por Rui Telmo Gomes. O sociólogo é apenas um dos muitos, mesmo muitos, parceiros do projecto, que até agora chegou a pelo menos 1411 pessoas, o equivalente a mais de cinco plateias do Teatro Nacional D. Maria II.

O mundo a arder, nós a ver a paisagem

“É a primeira vez que vamos fazer isto num ferry”, revela-nos Inês, ainda sem saber que, na verdade, será num dos catamarãs que utilizam o cais de embarque perto do jardim da Beira-Mar. As carreiras dos ferries que asseguram as ligações entre Setúbal e Tróia foram afectadas pelas greves parciais que os trabalhadores da Atlantic Ferries iniciaram em Julho. Ainda assim, será de facto a primeira vez do Teatro Fora de Formato numa embarcação – mais um cromo para a colecção de espaços públicos e não-convencionais em que têm actuado. O elenco é composto por Cuca M. Pires, Rita Delgado, Simon Frankel e Vasco Barroso, mas desta vez só contamos com Simon e Vasco. “A peça inclui quatro monólogos e quatro diálogos”, esclarece Miguel, já a bordo, sobre o espectáculo-provocação que, apanhando a audiência desprevenida, procura desestabilizar a rotina quotidiana e convidar à aproximação ao pensamento sobre a emergência climática.

Quando o actor Vasco Barroso se aproxima de um casal de veraneantes e lhes entrega o cartão de visita da Formiga Atómica, onde também se lê “Teatro Fora de Formato”, não há pausa para explicações. Vasco, que também é Vasco na ficção que Inês Barahona assina e Miguel Fragata encena, tem uma missão importante em mãos e todos os segundos são preciosos. A sua irmã Sofia está desaparecida e levou uma coisa que fará falta, e que tem a ver com um “futuro completamente líquido”. É por isso que, perante a exasperação de uma espectadora (“Desculpe, mas eu quero ver a paisagem”, queixa-se a senhora, de chapéu de palha na cabeça), Vasco não vacila. “Veja, veja, enquanto eu converso aqui com o seu marido”, responde, antes de rectificar o desvio no discurso e voltar à invasão de limos e algas e espécies desconhecidas no litoral, e aos geo-engenheiros que, esses sim, saberão dar a volta ao planeta. A sua aflição é capaz de nos fazer rir, mas não tem graça nenhuma. A subida do nível médio do mar é um facto, e não é o único efeito causado pela intensificação das alterações climáticas.

Formiga Atómica
Nuno Marques/DR

“Há um certo consenso em relação à magnitude do problema e, depois, duas escolas clássicas de pensamento, os esperançosos e os fatalistas”, avança Barahona, que garante não ter ainda encontrado quem recuse que estamos a viver uma crise. “Mas há quem não veja [a mudança] como uma prioridade”, lamenta Fragata, sem perceber como, quando as temperaturas estão cada vez mais altas – na vizinha Espanha, a superfície do solo ultrapassou os 60º Celsius –, os desastres naturais são cada vez mais severos e até o governo português já alertou para o risco de uma crise alimentar à escala global. No meio deste cenário pré-apocalíptico, é evidente a importância de convocar – e nos convocarmos – à participação. O discurso de Simon, que ouvimos logo a seguir ao de Vasco, é mais uma tentativa de abanar o sistema que Inês diz estar “muito bem montado” mas a precisar de uma profunda reestruturação. Resta saber se é suficiente para levar à acção o jovem que acena enquanto Simon fala sobre o império de molas que herdou, ou o senhor que – mais tarde, numa repartição municipal – quer chamar a polícia por causa dos supostos irmãos a discutir pela posse de uma caixa que, dizem, concede desejos com consequências globais.

“Todos estes encontros mundiais, estas cimeiras do clima, mesmo o acordo de Paris, nada destes instrumentos, que são assinados por estes países, têm força de lei. Nós agora vamos dormir com umas consciências muito tranquilas porque estamos a fazer tudo o que podemos fazer, mas está a começar a abrir-se um capítulo muito delicado sobre o tema da violência – isto é, quando é que começa a ser legítimo o recurso à violência, quando é que as pessoas que estão preocupadas e querem realmente fazer alguma coisa com impacto imediato podem recorrer a acções mais extremas, como esvaziar pneus. Isto é legítimo ou não é? Até onde é que podemos ir? Isto é como a greve, se não incomodar ninguém não tem impacto nenhum”, admite Inês. Miguel remata: “Revolução nenhuma se fez sem uso a protestos e a motins. Não podemos olhar para o que são actos mais radicais com um juízo moral, porque é alguma coisa absolutamente válida numa luta que é absolutamente necessária e que tem mesmo de chamar a atenção dê lá por onde der.”

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