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Dengo Club
Mariana Valle Lima

O Dengo Club é mais do que uma festa

Tem funk, liberdade e segurança. Este colectivo quer trazer cor e diversidade à noite lisboeta, reclamando o espaço da comunidade negra e queer.

Joana Moreira
Escrito por
Joana Moreira
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É sábado à noite e nada se passa na Av. Marechal Gomes da Costa, em Lisboa, quando o relógio marca uma da manhã. Nada, excepto dez metros de fila à porta para entrar num armazém à beira da estrada. Não há sinalética. Quem ali está sabe ao que vai. Lá dentro há corpos dançantes na plateia e no palco, a lembrar a aura de Fame (1980), não fosse a música a denunciar o ano no calendário. Contam-se tops de rede, correntes ao pescoço, abdominais expostos, óculos de sol, lábios brilhantes e cabelos perfeitamente entrançados. “Everyone is so cool. And so hot”, diz uma rapariga na fila para o bar, onde se batalha para dar vazão a quem espera por bebida. Leques erguidos bem tentam baixar a temperatura dos que dançam e viajam aos anos 90 ao som de “The Rhythm of the Night”.

Para lá da multidão, entramos nos bastidores quando se aproxima um jovem de sobrancelha cortada, cruzes ao peito e olhos com lentes de contacto coloridas. Apresenta-se: “Sou o dono da festa”. Eis Saint Caboclo, nome artístico de Eudes Junior, fundador das festas Dengo Club. Natural de Marabá, no estado do Pará, o brasileiro de 23 anos chegou a Portugal em 2013. Antes de se instalar em Lisboa, morou em Almada e depois no Montijo. “Quando vim para Lisboa achei estranho como era muito mais hostil sair à noite [aqui] do que numa festa ilegal na minha cidade, que é lá no meio do nada. Não havia um sentido de comunidade”, conta à Time Out.

A experiência nos espaços nocturnos do “circuito gay” lisboeta “foi horrível, mas fabuloso também”. “Era sempre a pessoa mais interessante lá dentro”, desvaloriza com um sorriso. A homogeneidade dos lugares fê-lo questionar-se. “Quase não se vê mulheres trans e principalmente mulheres trans pretas dentro de uma discoteca LGBT. É uma coisa bem estranha”, comenta. “Para saírem elas têm de se sentir seguras. Para andar na rua, durante o dia, já é perigoso para essas pessoas, imagine durante a noite”, continua, lembrando que “sair à noite é um privilégio para muitas pessoas, principalmente para quem não precisa de procurar, para quem pode simplesmente sair e se divertir em qualquer lugar porque vai estar sempre em segurança”. 

Dengo Club
Mariana Valle LimaSaint Caboclo, fundador do colectivo Dengo Club

Foi em busca desse espaço seguro que, em 2021, criou o colectivo Dengo Club, primeiro uma página de Instagram (@dengoclub), meses depois uma festa mensal e temática. O posicionamento é explícito e está nas redes sociais: “queer and black owned”. O objectivo é “mudar a vida noturna, a cena clubbing", reclamar o espaço das pessoas negras e LGBT na música electrónica e lembrar que a noite é de – e para – todos. Se soa a contra-cultura é porque é. Ricardo “Banu” de Carvalho, Soya, Cyber Tokio, Catarina de Carvalho e Saint Caboclo são as cinco peças que compõem o colectivo, com ideais semelhantes a projectos como Batekoo, no Brasil, Papi Juice, nos Estados Unidos, ou Pxssy Palace, no Reino Unido. 

Mas abalar as estruturas do circuito nocturno não passa apenas por criar um movimento e as barreiras encontram-se na procura de espaços. “Quando contactei os espaços que são mais conhecidos, no Cais do Sodré, todos me disseram que não. Não teve nenhum que sequer tivesse pensado na ideia. Falei com todas as discotecas possíveis”, recorda. “Uma ideia assim não vai dar certo”, “não existe público para isso”, “se tiver um line-up só de mulheres as pessoas não vão aparecer”, “se fizer um line-up só com pessoal LGBT eles não têm público”, “se fizer uma festa só para pessoas pretas LGBT não tem público”, ouviu.

Na festa no LAV – Lisboa ao Vivo, em Setembro, Titica actua perante uma enchente de gente em êxtase. “A Titica é um exemplo perfeito de contra-cultura, uma mulher trans, de Angola, que fez o sucesso que fez. Com a MC Carol foi a mesma coisa, uma mulher favelada, gorda, preta, que levanta a bandeira que ela levanta, abertamente feminista, que não tem medo de viver a realidade dela, é contra-cultura também”, diz Caboclo.

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Mariana Valle Lima

A Dengo Club “é um projecto feito para centralizar em pessoas pretas, queer e mulheres. O nosso foco sempre foi esse”, garante. “Queríamos criar um espaço que seja preto, em que toquem músicas pretas, que seja seguro para mulheres e para pessoas LGBT, que não seja barrado por seguranças, que não seja hostil, que não seja um line-up branco a tocar música de pessoas pretas. Queríamos dar a chance de pessoas pretas subirem num palco.

O que não invalida que todos sejam bem-vindos às festas. A primeira aconteceu em Outubro do ano passado. Apareceram 320 pessoas. Era quinta-feira, “porque a discoteca que liberou para a gente fazer não queria dar um sábado ou um domingo”. “A gente não é a primeira festa, é a primeira que deu certo. É diferente. Eu sei que alguém deve ter tentado antes de mim”, suspeita.

“É a segunda [vez que venho], é sempre incrível, porque é um lugar em que te sentes super à vontade, super livre”, diz Favela Lacroix, 25, à porta do LAV, numa pausa entre danças. “Há muita coisa a acontecer em Lisboa, mas a Dengo é completamente diferente”. Para Núria Serrote, 23, é uma estreia. "Falaram-me muito bem, então fiquei com imensa curiosidade. Agora que aqui estou é impossível não querer voltar, é só pessoas lindas”, diz. Vem vestida a preceito, respeitando o tema da festa: afropunk. “Já tinha tudo em casa, não foi muito difícil montar o look.”

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É uma das diferenças das festas Dengo Club: há um tema (como a estética Y2K ou o mítico Studio 54) e um dress code, que pode ser respeitado, mas que não exclui. “Não é um show onde as pessoas vão ver quem está bem vestido num palco. Todo o mundo vai se montar e se vestir. Quem não se sentir confortável também vai estar sempre bem-vindo. Se quiser aparecer de chinelo na Dengo, venha de chinelo”, diz Saint. 

As sonoridades adaptam-se às festas. Mas “vai ter sempre funk, afro e house”. Por vezes há também concertos, e as entradas vendem-se online, o que permite ao colectivo saber que o público é sobretudo dos 18 aos 29 anos. Só 15% está entre os 30 e os 40.

Prestes a fazer um ano, já há planos para fazer uma festa Dengo Club lá fora – a começar pelo Brasil, em 2023. “Agora [donos de discotecas] mandam-me mensagem. Surgiu esta data, não quer fazer aqui uma festa?”, conta Caboclo. Não é sinal de que o trabalho está feito, até porque o projecto vai crescer, em breve também no espaço digital. “As discotecas agora estão prontas para nos receber porque abriram os olhos. Mas explicar que existe uma lista trans [com um preço de entrada reduzido], que existe uma lista para quem não consegue pagar... É complicado. Para eles o lucro vem primeiro”. Caboclo assegura que o saldo de cada evento é sempre posítivo. “Na Dengo conseguimos provar que é possível ter lucro e ter uma ideia de sociedade e comunidade. Mas ninguém está preparado para isso ainda.”

Festas anunciadas no Instagram @dengoclub

Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 659 — Outono 2022.

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