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Televisão, Séries, Painting with John, John Lurie
©DRPainting with John

O eremita John Lurie fez uma série para a HBO – e isso é um acontecimento

‘Painting With John’ é uma visita guiada pelas memórias de um artista marcante. Deixámo-nos cativar pelos relatos crus do debilitado Lurie.

Hugo Torres
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Hugo Torres
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Uma sumidade no underground de Nova Iorque, o pico da fama de John Lurie tem mais de 30 anos. Foi em meados da década de 1980, quando protagonizou dois filmes de Jim Jarmusch: Para Além do Paraíso (1984) e Vencidos pela Lei (1986). Nessa altura, chegou a trabalhar com realizadores como Martin Scorsese (A Última Tentação de Cristo) ou David Lynch (Um Coração Selvagem), mas a música e os seus The Lounge Lizards, que partilhava com o irmão, Evan, eram ainda os fiéis depositários do melhor que Lurie tinha para oferecer. Ao saxofone, testava as fronteiras do jazz de uma forma que espantava o público e a crítica. Mas a sátira sempre foi ponto de honra e, em 1991, assumiu-se como vanguardista da reality tv com Fishing with John, em que levava a pescar amigos como Willem Dafoe, Tom Waits ou Matt Dillon. Nenhum dos quais sabia efectivamente pescar. Nem Lurie. Num dos episódios, o narrador dá-o mesmo como morto – de fome. Poucos anos depois, começou a ficar doente e a recolher-se, forçado a deixar progressivamente a música e o cinema. Agora, regressa aos ecrãs com Painting With John, que se estreia este sábado na HBO e que abre as portas do seu eremitério, numa pequena ilha das Caraíbas.

Lurie está bastante limitado pela doença de Lyme, que tem nefastas consequências neurológicas. Segundo o próprio, tem uma a duas horas “boas” por dia. E foi através dessa janela de oportunidade, e graças à lente de Erik Mockus, que os produtores executivos Adam McKay (realizador de A Queda de Wall Street, produtor de Succession) e Todd Schulman (Borat, o Filme Seguinte) montaram uma das mais interessantes séries deste início de 2021. São apenas seis episódios, com cerca de vinte minutos cada, nos quais Lurie vai desvelando histórias para a câmara. Ora encontros inusitados, ora pequenas transgressões, ora considerações sobre a vida. Aos 68 anos, Lurie sabe que pelo menos isto é verdade: é preciso divertirmos-nos todos os dias, parar um pouco os afazeres e lançar pneus colina abaixo, ou desfazer contra uma parede o drone com que íamos filmar a abertura no nosso ansiado regresso à televisão – tal como ele, todos os dias.

John Lurie não encontrou a luz. O isolamento não o transformou num mestre aforístico nem Painting With John é uma série de auto-ajuda, autoconsciência, auto-reflexão. “Fuck that”, diria ele. Painting With John é uma provocação constante, do primeiro ao último instante. Lurie ridiculariza tudo – dos restaurantes finos de Nova Iorque, onde toda a gente se compraz com risinhos vindos da garganta, por oposição às gargalhadas guturais e contagiantes que Lurie recorda ter ouvido em África ou na Tailândia; à idílica e verdejante paisagem que constitui o seu “quintal” caribenho e que ele faz de conta que desdenha (“Aqui está um belo pôr-do-sol, agora escrevam um poema”, diz ele, perante um cenário de postal, desvencilhando-se de lugares comuns e atirando-os para cima dos espectadores).

As histórias são hilariantes. E nem os mortos estão livres do espírito vernacular de Lurie, que conta como certa vez a voz de Barry White lhe fez vibrar os testículos; ou de como numa certa noite partilhou umas linhas de cocaína com Rick James e Steve Rubell; ou de como gostaria de aproveitar o momento para acertar contas com Gore Vidal, um dos maiores romancistas americanos do século XX, que certo dia, após um voo partilhado, não lhe agradeceu a ajuda com uma pesada mala num daqueles lentíssimos e exasperantes tapetes rolantes de aeroporto – “Fuck you, Gore Vidal”, graceja ele.

Os vivos muito menos. Lurie revela, por exemplo, um inesperado pedaço da vida de Zach Galifianakis, que se tornou uma vedeta internacional com os filmes A Ressaca: “O Zach Galifianakis limpava a minha casa. A sério. E fazia um bom trabalho. Eu gostava dele. Sabia que ele queria ser humorista e portanto deixava-o contar-me uma piada no fim de cada dia. Era doloroso.” Lurie ri-se. Sabe que lhe está a fazer uma maldade, mas atalha de imediato: “Será que ele me acha um idiota? Seria uma pena.” A família também entra, em particular na sanguinolenta história em que o irmão rebenta os pontos de uma cirurgia à boca porque estavam os dois a curtir o som de Live at Birdland, de John Coltrane, para desespero da mãe. “É uma memória bonita da minha infância. É esse o custo da música.”

Pensar-se que já estamos perfeitamente instalados dentro da sua cabeça e que o compreendemos é, no entanto, um erro. O que Lurie nos mostra é epidérmico, uma couraça que protege o mundo dos seus demónios interiores – e isso revela-se quando o artista fala, com aparente leveza, da morte do amigo Anthony Bourdain. Aliás, ele deixa essa pista logo a abrir, falando sobre as suas pinturas, arte à qual se tem dedicado e que tem sido exposta nas mais diversas latitudes (não é um mero passatempo: algumas obras foram mesmo compradas pelo MoMA). Diz ele: “Quero que saibam que nenhuma das árvores nas minhas pinturas é feliz. São todas miseráveis. Muito infelizes. As flores em particular. Odeiam a vida.” São um reflexo dele, claro. Este século não tem sido fácil para Lurie, e ele sabe exactamente porquê: a maré de azar começou quando estrangulou a enguia que pôs na capa da edição alemã do álbum Voice of Chunk (1989). Ele até foi nomeado, anos mais tarde, para um Grammy pela banda sonora do filme Jogos Quase Perigosos, e até encerrou a década de 1990 com o mais aclamado dos seus discos, The Legendary Marvin Pontiac: Greatest Hits, mas isso não importa nada. Ele sabe-o. Foi o raio daquela enguia viscosa.

HBO. Sáb (estreia).

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