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Karōshi é a nova criação do Teatro da Cidade, a estrear esta quinta no D. Maria II. E fala-nos de morrer por excesso de trabalho. O que gerou uma enorme dificuldade em terminar este texto.
A folha de alumínio não serve apenas para embrulhar sanduíches para o lanche, ou para cobrir o tabuleiro que se leva ao forno. Neste caso, forra uma sala onde um homem, de costas para o público, trabalha. O prateado sugere o artificial que esta sala – com um estrado elevado a 60 centímetros, uma mesa, duas cadeiras, uma janela – é.
O trabalhador, Bob, não pode parar, há uma máquina qualquer que o impede, de tal forma que há até uma mulher-manutenção para lhe limpar o rosto e as mãos, para lhe tirar a urina da algália quando esta estiver cheia. Há um técnico de limpeza que usa branco-integral e odeia plantas, porque plantas significam sujidade. Há um desenhador de som – também aparente patrão – que tenta acalmar Bob com um ruído ambiente onde cabem sirenes, mochos galegos e o mero burburinho das ruas. E há, ainda, uma mulher que trata da iluminação, que nos diz quando é dia e noite.
Estamos em Karōshi – nova criação do Teatro da Cidade que esta quinta-feira se estreia no Teatro Nacional D. Maria II –, algures entre uma experiência de um capitalismo por vir e um quotidiano distópico em que a envolvência morreu, em que só sobra esta sala de trabalho.
As viagens de autocarro podem ser revigorantes. Há um ano, Guilherme Gomes e Nídia Roque, numa dessas viagens proporcionadas pela Carris, ouviram de um amigo a história de uma doença diagnosticada nos anos 80 no Japão e já reconhecida pela Organização Mundial de Saúde, conhecida como Karōshi, que é definida como morte por excesso de trabalho. Resultado? Inquietação: “Confrontámo-nos com o conceito de morte por excesso de trabalho e achámos que fazia muito sentido falar sobre isso agora, até porque para nós foi uma espécie de surpresa que o excesso de trabalho nos pudesse matar. Não é evidente. Um pescador vai para o mar sabe que pode morrer, um tipo que vai para um escritório, à partida nada indica que isso vá acontecer”, adianta Guilherme Gomes.
Bem visto. E isso fê-los levar-nos para este universo que embora seja, em palco, minado pelo absurdo é profundamente reconhecível neste mundo 6.0, onde já nem vale a pena desligar o computador – é baixar o ecrã que daqui a nada já lá temos que voltar –, onde o horário de trabalho se dissipou, onde somos mal-vistos, talvez até excluídos, porque não respondemos a um email enviado a horas em que já não se devia trabalhar: “A conversa do ‘é porque não gostas assim tanto do que fazes’ é real, apontam-nos o dedo, como se não fosse legítimo chegar a casa e não pensar mais em trabalho”, explica Rita Cabaço, ao que Nídia Roque acrescenta: “O espaço físico não existe. Antigamente picava-se o ponto e saía-se do trabalho e havia mais essa ideia de trabalho feito. Agora acho que é muito importante dizer: ‘desculpa, mas eu não estou no meu horário de trabalho’”.
Só que nesta sala, como noutras – menos do que aquelas que desejaríamos, claro – chega o momento da quebra do protocolo. A janela falsa que devia vir indicar que já é noite não aparece. A manutenção fala com Bob, ainda que saiba que não o pode distrair. A limpeza estupefacta-se com o aparecimento de um trevo neste lugar tão estéril e sem vida. E o desenhador de som fica sem saber o que dizer. Diz: “Temos que continuar”. Pois temos, isso é o que nos dizem todos. Obrigadinho.
TNDMII. Qua e Sáb 19.30. Qui-Sex 21.30. Dom 16.30. 6-11€.
Criação Teatro da Cidade
Com Bernardo Souto, Guilherme Gomes, João Reixa, Nídia Roque e Rita Cabaço
Cenografia Ângela Rocha
Luz Rui Seabra