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O pão que a Internet amassou

Alfredo Lacerda
Escrito por
Alfredo Lacerda
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A loucura panificadora que assolou o mundo trouxe o velho azedume ao crítico da Time Out, que traça o perfil dos novos padeiros instantâneos.

O grande tema da semana não foi se devemos ou não usar máscara. Isso foi só um espirro de opinião pública, um trecho de conversa à mesa para preencher a quota de empenho cívico e pesar nacional.

Aquilo que ocupou mesmo as pessoas, de manhã à noite, do pequeno-almoço ao jantar, foi:

1- Qual a melhor receita de pão?
2- Onde encontrar farinha e levedura?

Por todo o país, por todo o mundo, uma febre panificadora assolou povos e supermercados. Sofreu muita gente, a começar pelas pessoas forçadas a comer o seu próprio pão. Mas ninguém sofreu tanto como os caixas e repositores de produto.

Eu mesmo assisti a um motim em pleno Pingo Doce. “Vocês sempre tiveram levedura, o que se passa?”, vociferava a cliente, indignada com o fim do stock. “Acabou. E agora estamos a dar prioridade a outros bens de primeira necessidade nas reposições”, respondeu a chefe de loja, fria e protocolar. “Ai, levedura não é um bem de primeira necessidade?!”, contrapôs a mulher, crescendo para ela, qual padeira de Aljubarrota do século XXI, tailleur e sapato de meio tacão.

Mas se nos supermercados houve tensão, foi nas redes sociais que o pão pegou fogo. A maioria usou “a receita da Filipa Gomes”; havia ainda uns 20 por cento que tinham “uma receita infalível” de origem não identificada; 25 por cento valeu-se do “pão do Jamie” [Oliver]; e 1 por cento andou às voltas com “a massa mãe”.

Todos fizeram um pão entre o miserável e o assim-assim.

As Filipinas

Comecemos pela receita de Filipa Gomes, a apresentadora do 24 Kitchen. A receita é, genericamente, conhecida desde 1970 e tem por trás um senhor chamado Raymond Calvel. O professor Calvel inventou um método a que deu o nome de autólise, que facilita a tarefa do padeiro. Basicamente, prescreve que a mistura de farinha com água fique a descansar. Não é preciso amassar, numa primeira fase, mas depois é preciso ter técnica, mãozinhas rápidas.

Mark Bittman, do New York Times, tornou esta técnica conhecida do grande público, em 2006. Essa receita é, ainda hoje, e mesmo antes da loucura mundial pelo pão caseiro, a mais vista do jornal. A famosa receita do New York Times continua acessível na internet, basta pesquisar por “bread recipe”.

Filipa Gomes parece ter reparado nela e limitou-se a reproduzir a fórmula, acrescentando uns óculos de massa e um frigorífico SMEG como cenário do seu vídeo no Instagram.

Aparentemente, o sucesso do pão de Filipa Gomes é indiscutível. Na altura em que escrevo esta prosa, a receita no seu Instagram já tem mais de 400 mil visualizações. Mas, se tiverem paciência para pesquisar nos comentários, vão perceber que, afinal, há muita gente insatisfeita ou com questões. Centenas delas.

O Padeiro Instangrâneo

Dito isto, surgiram de debaixo das pedras das redes sociais milhares de outros padeiros instantâneos, praticantes de uma “receita infalível” de pão. Como é que ela, a receita infalível, apareceu? Normalmente, não é dada muita informação. “Fiz ontem, hmmmm. Ficou delicioso com manteiga. A receita é infalível”, regozijava-se, por exemplo, Fábio Antunes. Como se qualquer coisa quente com manteiga não ficasse boa. A euforia era logo seguir relativizada. “Para primeira vez, não está mal”, concluía. Adivinharíamos, sem ver a foto, o tamanho da despromoção, mas a acompanhar o texto o padeiro instantâneo publicava a imagem de um bocado de massa pálida, disforme como uma bosta de rinoceronte. Está mal, sim, Fábio.

Os Jamianos

Sobre “a receita do Jamie”. Jamie Oliver é o campeão das receitas rápidas e bonitas, de uma forma geral, de todas as receitas. Metade não funciona, mas metade são surpreendentemente boas. No caso do pão, Jamie usa o isco do costume: poucos ingredientes, em pouco tempo – você consegue! Farinha, água e sal – e o fermentozinho artificial, já agora.

A receita milagrosa de Jamie é suposto fazer pão saboroso em casa, sem amassadeiras nem estufas, em menos de duas horas. Sabidão, o Jamie lá pelo meio atira: “Se ficar como uma panqueca, não tem problema.” Lembra a do tipo que inventou um manual para fazer Rolls Royce’s em casa: “Se ficar como um carrinho de rolamentos, não tem problema.”

A receita do Jamie que não é do Jamie não é melhor do que a receita da Filipa que não é da Filipa. Mas os tugas são sempre mais tolerantes com os famosos estrangeiros. “Funciona lindamente”, escreveu Beatriz Fonseca, jamiana confessa, logo acrescentando. “Ainda é melhor do que a receita da Filipa”. Na foto, a imagem de um pão desmanchado como um pudim atirado do terceiro andar.

Os Snobes da Massa-Mãe

No extremo oposto temos os adeptos da massa mãe. Os snobes do pão. São um grupo feroz, elitista e extremamente obsessivo. Para eles, todo o pão que não leve aquele liquidozinho podre e borbulhoso, parecido com a cara do Adrian Mole e a cheirar à cola da Primária, não é pão. Mais, segundo esta seita, a massa mãe faz bem a tudo: ao cocó, ao celíaco e ao doente oncológico. Imaginamo-los à noite, em frente ao frasquinho, a contar as bolhinhas e a dar festinhas ao boião.

Nos posts dos snobs da massa mãe há sempre uma legenda misteriosa e biomolecular, por vezes polvilhada de vida mundana. “Os meus bichinhos estão a procriar que nem participantes do Love on Top”, comentou, por exemplo, Marco Alves, dando à estampa do Facebook o seu frasco encardido.

Um dos comunicadores desta facção, Ricardo Dias Felner, aka O Homem Que Comia Tudo, decidiu educar o povo com uma receita na revista Sábado, com algum sucesso. Mas também tinha marotice. Felner anunciou em título um pão sem levedura – só com massa mãe, portanto. Não custava nada, apregoou. Era só alimentá-la duas vezes por dia. Só. Todos os dias. Só. Durante quatro ou cinco dias, que podiam ser 10. Só. Isso e depois seguir a receita, um relambório complexo como um manual de equações diferenciais. Só.

Tudo dado e amassado e baralhado. A grande maioria do pão que temos feito em casa é mauzinho. Fazer pão é difícil. A receita ajuda, mas não substitui noções básicas sobre o processo e muita prática. Cada casa, cada circunstância tem condições diferentes (de temperatura do ar, do frigorífico, da água, do forno) e tudo isso influi drasticamente no resultado.

A nossa felicidade com o pão é só esta. Estamos a aprender a fazer coisas. E, de entre todas essas coisas, nenhuma é tão satisfatória como o pão que a internet amassou.

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