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teatro
Fotografia: Melissa VieiraO actor Raul Orofino

O teatro de Raul Orofino é para levar para casa

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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Raul Orofino faz teatro ao domicílio há três décadas. Falámos com o actor e dramaturgo brasileiro sobre a sua carreira de “entregas” e a temporada adiada no Bar A Barraca – Teatro Cinearte, devido ao novo coronavírus.

Brasil, 1990. Foi como tudo começou. No governo de Fernando Collor de Mello, quando a crise se adensou no país e os mecenas do teatro viram as contas pessoais congeladas, os actores ficaram sem palcos. “Disse vou fazer, nem que seja na casa das pessoas”, relembra Raul Orofino, que escreve e actua “aonde você quiser”. Chama-lhe “teatro pizza” e a primeira entrega foi feita na casa de uma amiga, que juntou um grupo e cobrou entrada. Correu tão bem que nunca mais parou.

Fluente em português, espanhol e italiano, o dramaturgo brasileiro viaja muito para encenar os seus monólogos – nos quais ataca temas como o preconceito, a resistência à mudança ou o embrutecimento das relações – em residências privadas, empresas, universidades, hospitais e até aviões. “Em Dezembro último fiz uma coisa que nunca tinha feito: uma festa de Natal cá, em Lisboa. Uma mulher me viu na Repsol, aonde fui fazer uma apresentação como actor-palestrante, e resolveu contratar-me para um almoço de família. Tinha a mãe dela, a mãe do marido, os jovens. Foi muito bonito e o teatro ao domicílio me dá umas coisas assim.”

Para comemorar as três décadas de carreira, duas das quais em Portugal, onde vive desde 2003, Raul tinha planeado regressar aos palcos este mês de Março, no Bar A Barraca – Teatro Cinearte. “Estava muito aflito de fazer. Às vezes as pessoas perguntam ‘você está em cartaz?’ e não, não estou, só se me chamar ao domicílio. Daí a minha vontade de fazer aberto ao público, num espaço icónico da cidade, num ambiente íntimo que é a minha cara, feito com mesas, onde as pessoas vão sentar e ficar perto de mim, com tudo aceso, como ‘tá aqui”, diz, esticando os braços para abarcar a sua sala de estar, o sofá onde nos sentamos, com uma ilustração por cima das nossas cabeças, e os adereços, poucos, que escolheu para apresentar um excerto da temporada, adiada devido ao novo vírus COVID-19. “Sabe, todas as minhas histórias falam em mudanças. Já que estamos a mudar de hábitos, melhor mudar rindo e, através do humor, pensarmos em atitudes construtivas e de protecção”, acrescenta o actor, que continua disponível para levar cultura a locais improváveis.

No “cardápio”, como chama ao seu portefólio de peças, tem muitas histórias, todas da sua autoria, mas em Humor, Teatro, Amor, o seu mais recente espectáculo, apresentará apenas quatro de cada vez – umas na primeira semana, outras na segunda, depois repete. Interpreta-as à vez, adaptando a voz e a expressão corporal, transformando-se diante do público, num “verdadeiro pingue-pongue cénico”. “Na sua casa, por exemplo, o seu jantar também é diferente do jantar de outra pessoa, os amigos não são os mesmos, por isso ela pode escolher personagens que você não escolhe”, exemplifica, ressalvando que todos os episódios encenados acontecem no consultório de um analista.

No teatro, há brinde, avisa. “Uma versão do clássico da Capuchinho Vermelho, com o qual terminaria os espectáculos, onde o Lobo Mau tem romance com a vovózinha e a Capuchinho fica irada, completamente com raiva”, conta, encenando a conversa entre a Avó e a Capuchinho, entre risadas explosivas. “Tudo muda na história, entendeu? O Lobo Mau foi lá para comê-la, no sentido antropofágico da palavra, e aí quando ela abriu a porta sorrindo ele viu aqueles cabelos brancos e pensou: 'que senhora bonita'. Aí eles começaram conversando e na outra semana ele leva CDs para ela, do Frank Sinatra. Tudo muda no mundo.” Até no do Caçador, que é homossexual e fica muito emocionado por ver uma relação impossível resultar, acrescenta.

“Você ri, mas ao mesmo tempo pensa, sobre questões profundas, contemporâneas”, garante Raul, que também se assume como orador e professor de inteligência emocional. “Essa experiência de ter um teatro na sua casa marca muito, porque você não está num local público, está rindo com seus amigos do lado, com tua família. Uma vez uma mulher me ligou e disse ‘Sabe aquela história do anão? Logo depois a gente foi jantar, a minha sogra veio connosco e foi a primeira vez que achei a minha sogra simpática’. E é bacana você ouvir isso. Você colabora, de alguma maneira, para que as pessoas sejam melhores com elas e com os outros. As pessoas não são anões, não são sogra, gay, preto. As pessoas são pessoas.”

Teatro ao domicílio. 968 283 560. 15-20€/pessoa.

+ As salas fechadas e os eventos cancelados em Lisboa devido ao Coronavírus

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