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Não se trata apenas de dar visibilidade às mulheres na cerâmica, mas de dar visibilidade às mulheres. Quem o diz é Maria Helena Souto, comissária da exposição que acaba de chegar ao Museu Nacional do Azulejo (MNAz). “Territórios Desconhecidos: a Criatividade das Mulheres na Cerâmica Moderna e Contemporânea Portuguesa (1950-2020)”, patente até Junho de 2022, tem um grande objectivo: tirar da sombra – as mulheres e a cerâmica.
Para descobrir esse território é preciso percorrer as três salas expositivas, bem como os corredores do museu em Xabregas. Ali está visível o trabalho de 55 autoras portuguesas que contribuíram para o desenvolvimento da cerâmica desde o pós-guerra até à actualidade. As peças que integram a exposição provêm, na sua maioria, do acervo do MNAz. Outras foram cedidas por colecções públicas e privadas e há ainda algumas que foram disponibilizadas pelas próprias criadoras. Há poemas de autoras portuguesas que vão pontuando a mostra. O primeiro, logo à entrada, é de Natália Correia e está acompanhado pela obra Sombra, da artista plástica Lurdes Castro. “Com esta sombra fazemos uma metáfora da exposição, porque o que se pretende é tirar da sombra o nome das mulheres”, diz Helena Souto.
Entre as mulheres que inscreveram o seu nome na azulejoaria moderna e contemporânea estão referências como Maria Helena Vieira da Silva, mas também outras menos reconhecidas pelo público, como Estrela Faria. “É um nome que tem lentamente vindo a ser recuperado. A Estrela Faria é um caso muito interessante de afirmação feminina num tempo, neste caso nos anos 40 e 50, a partir da Exposição do Mundo Português. Foi das poucas mulheres na célebre exposição, a trabalhar naquilo que é hoje o Museu de Arte Popular”, recorda.
“Queremos chamar a atenção para estes casos que ficaram esquecidos pelo próprio tempo, que ficaram duplamente esquecidos. Por causa de serem mulheres e porque o tempo também é cruel, por vezes, e ainda mais sendo mulher. Ser mulher implicava uma luta muito mais afirmativa e ficavam geralmente na sombra deles. Lá está, Frederico Jorge ou Thomaz de Mello são nomes que as pessoas associam à exposição de 1940, a Estrela Faria nem tanto. Associam aqueles que estudam. Uma voz mais geral não acontece”, sentencia.
Nascida em 1910, Faria não só a deixou um legado próprio como inspirou artistas enquanto professora. “Isso fez com que ela marcasse gerações, inclusive gerações de mulheres. Há peças da autoria de uma designer, Maria Helena Matos, que foi aluna de Estrela Faria na [Escola] António Arroio, e foi a Estrela Faria que a incentivou a ir trabalhar nestas áreas, primeiro na cerâmica e depois no vidro”, diz a investigadora.
Outra ceramista que pontua em diferentes momentos a exposição é Maria Keil, cuja obra embeleza várias estações de Metro em Lisboa. “Foi uma das mulheres que se impôs. Sempre de forma muito elegante, mas conseguiu. Começou por trabalhar com o seu marido, o arquitecto Francisco Keil do Amaral, mas nunca ficando na sombra dele”, conta Helena Souto.
“Em Portugal estamos tão habituados a azulejos que muitas vezes não lhes damos a importância que efectivamente têm”, diz a comissária da exposição, que alerta para a preservação do legado de Keil no espaço público da cidade. “Como se sabe a Maria Keil deixou-nos aquelas 19 estações de metropolitano soberbas, umas mais bem preservadas, outras nem tanto, como bem sabemos”, solta.
A referência às estações de metro surge cirurgicamente em jeito de apelo. “Optamos por colocar aqui os desenhos para os padrões do metropolitano dos Anjos. Que infelizmente foi uma das tais [estações] que não foi devidamente preservada. É uma chamada de atenção que se pretende com estes desenhos. Pusemos também os desenhos para os painéis do Casino de Vilamoura, que é outro caso que não estará a ser devidamente preservado. Isto são chamadas de atenção.”
Credibilidade em trânsito
O movimento de reparação histórica do silenciamento das mulheres na arte tem ocupado académicos numa reflexão para muitos urgente. Agora, o movimento parece estar finalmente a conquistar o espaço na agenda cultural, de galerias e museus. O tema foi, aliás, o foco de uma grande exposição retrospectiva na Fundação Calouste Gulbenkian em 2020. “Tudo o que eu quero — Artistas portuguesas de 1900 a 2020” mostrou, de Junho a Agosto, duas centenas de obras de 40 artistas portuguesas produzidas entre o início do século XX e os nossos dias.
A cerâmica é “só” mais uma arte em que as mulheres foram sistematicamente apagadas da história? “O problema aqui coloca-se de forma dupla”, alerta Helena Souto. “As mulheres já têm uma luta específica para se afirmarem nas artes plásticas”, diz, lembrando que, no caso português, “curiosamente os nomes internacionalmente mais conhecidos têm sido mulheres, o que dá alguma graça à questão. Mariana Helena Vieira da Silva, Paula Rego, até algumas jovens consagradas agora são mulheres. É curioso”.
“Quando chegámos ao séc XIX foi preciso que uma série de criadores e movimentos reposicionassem a importância dessas artes remetida para essa menoridade. A cerâmica foi uma delas. Não foi fácil e ainda hoje há hesitações. Estranhamente ainda há hesitações”, diz. Enquanto professora universitária, Helena Souto queixa-se que quando pede aos alunos exemplos de obras de arte, recebe sempre de volta Guernica ou Gioconda. “O que sai logo é o nome de uma pintura.”
Só que nas paredes do antigo Convento da Madre de Deus não estão apenas mulheres artistas que dedicaram a vida à cerâmica. Estão também pintoras que trabalharam com a mesma matéria. A questão coloca-se: se uma artista pintar um quadro é arte, mas se trabalhar com cerâmica já não é? Uns enormes painéis de azulejo da conhecida pintora portuguesa Menez (produzidos pela fábrica Viúva Lamego) desafiam a resposta e os limites das fronteiras. “Estes painéis foram resgatados não só ao tempo, mas foram resgatados de uma situação efémera. Estes foram pensados para a Exposição Universal em 1958 em Bruxelas”, conta a comissária sobre o que define como “um achado” que o museu foi capaz de recuperar. “Isto estava completamente… Foi um trabalho insano, de paciência, de qualidade, e de conhecimento deste museu enquanto lugar de investigação”.
Menez (nome artístico de Maria Inês Ribeiro da Fonseca) não foi a única artista a sentir-se estimulada pelos desafios da “arte do fogo”. “Umas mais como a Maria Vieira da Silva, em que a relação dela com a azulejaria é intermediada com o mestre Cargaleiro, outras não, fizeram as suas experiências, mas a intervenção delas foi essencial. O nome foi muito importante, há que dizê-lo. O contributo das mulheres das artes plásticas, que já tinham esse nome, vai por assim dizer contribuir para retirar dessa menoridade a cerâmica.”
O trânsito da credibilidade de um veículo de expressão artística para o outro através de nomes já consagrados terá sido determinante para tirar a cerâmica da sombra. “Assim como temos as artistas plásticas que fazem experiências nesta área, como é o caso da Graça Morais, depois também temos a gente jovem que vem do design”, diz a comissária da exposição. Por isso, uma das salas da mostra é inteiramente dedicada às pontes entre a cerâmica e o design, com obras de Sónia Sapinho ou do estúdio Pedrita (Rita João e Pedro Ferreira).
Outro dos destaques de “Território Desconhecido”, que deverá ser o foco da programação do museu no próximo semestre, é uma escultura de grande dimensão de Joana Vasconcelos que ocupa a sala D. Manuel I, no piso térreo, habitualmente fechada ao público.
À margem da exposição, patente até Junho do próximo ano, o museu vai desenvolver iniciativas paralelas, mas a programação não está ainda fechada.
Museu do Azulejo. 15 Dez a 26 de Junho de 2022. Ter - Dom. 10.00-18.00. 5€
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