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‘Pátria’ conta uma história de violência

É a série do momento em Espanha – e ainda nem se estreou. Antecipamos a nova aposta da HBO, um tratado à flor da pele sobre o terrorismo basco.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
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Dez anos é pouco tempo. Com mais de meio século de luta armada pela independência do País Basco, o cessar-fogo “geral, permanente e verificável” anunciado pela ETA no início de 2011 deixou uma sociedade em chaga. Traumatizada, frustrada, ainda a chorar os seus mortos e encarcerados. Uma sociedade em que as verdades mais dolorosas, as verdades individuais mais do que as colectivas, medram na penumbra, ditas à boca pequena para evitar estalar o verniz. Um ano de paz por cada cinco de terror é quase nada. Até porque a sombra da ETA só desapareceu em 2018, quando a organização separatista se deu por extinta. Ontem. Pátria não convoca fantasmas, mexe fundo com gente de carne e osso. Famílias, amigos, vizinhos, pessoas de todos os dias, e isso está a causar um turbilhão.

Pátria é a grande aposta europeia da HBO para esta temporada. Estreia-se no domingo, dia 27, em 61 países e territórios simultaneamente (incluindo nos EUA). Em Espanha, os oito episódios, que no serviço de streaming serão disponibilizados à razão de um por semana, foram exibidos há dias num punhado de sessões especiais no Festival de San Sebastián. Mas os primeiros elogios são anteriores, de quem o viu antecipadamente e em particular de um dos principais críticos do El País, o cáustico Carlos Boyero. “Não há nada que considere desinteressante em Pátria. Provoca-me muitos e gratos sentimentos. É a série de que mais gostei (e não me esqueço da primeira e brilhante temporada de La Peste) de todas as que foram realizadas em Espanha”, escreveu Boyero há pouco mais de uma semana.

Esqueçam, portanto, êxitos espanhóis como As Telefonistas ou Vis a Vis (Netflix), Foodie Love ou O Cais (HBO). Porventura, La Casa de Papel. Pátria promete ser algo maior. Pelo menos, mais à flor da pele. Sobretudo porque já existe um precedente: a série é a adaptação televisiva de um livro que, tendo mais de 600 páginas, se tornou num best seller com mais de um milhão de exemplares vendidos só em Espanha; em Portugal, um de muitos países onde o livro foi editado, a Dom Quixote acaba de comunicar a sua terceira edição. O título é o mesmo e o seu autor, o escritor basco Fernando Aramburu (n. 1959), que vive há três décadas na Alemanha, conseguiu com ele uma atenção literária e mediática sem precedentes, recolhendo um manancial de prémios pelo caminho.

O fenómeno editorial teve início em Setembro de 2016, quando o livro foi lançado. Mas o criador da série que agora se estreia, o também basco Aitor Gabilondo, nem sequer esperou por essa data para adquirir os direitos de adaptação: leu uma sinopse e agiu por impulso. A HBO chegou depois, criando condições para uma produção ambiciosa e à altura da história. A narrativa centra-se em duas mulheres, Bittori (Elena Irureta) e Miren (Ane Gabarain) – a primeira é a viúva de um empresário assassinado pela ETA, que decide regressar à vila de onde fugiu após a morte do marido, decidida a descobrir o nome do responsável pelo assassinato; a segunda é mãe de um etarra preso e de quem se desconfia uma ligação ao crime. Duas mulheres de duas famílias que, antes do trágico acontecimento, eram muito próximas, amigas, partilhando a intimidade. Uma união terminada pela violência.

O regresso de Bittori vai testar a capacidade de convivência de duas famílias nos antípodas do conflito. Mas se Aramburu, que optou por de se manter à parte na transformação do seu romance em guião, traçava uma divisória evidente entre o bem e o mal, entre quem sofreu e quem provocou esse sofrimento, Aitor Gabilondo e os dois realizadores com quem trabalhou, Félix Viscarret e Óscar Pedraza, decidiram contar uma história em que a dor é partilhada por todos, de uma forma ou de outra. “O pior [na criação desta série] foi a questão emocional, os fantasmas, os medos. Eu sou daqui, sou euskaldún [basco], fui para a ikastola [escola basca], toda a minha família é daqui. Nasci em 1972, toda a minha vida foi atravessada pela história da ETA, e mais do que isso, a ETA ao nível do solo, na rua. Precisava de contar esta história. E não queria fazer uma série de bons e de maus. A frase que repeti para mim mesmo foi ‘a dor não tem lado’”, disse Gabilondo ao El País.

“Tive um amigo muito querido que foi assassinado pela ETA. Tenho conhecidos que acabaram na ETA. E alguns desses conhecidos estiveram envolvidos na morte desse amigo. Também tive familiares ameaçados que tiveram de viver com escolta.” Gabilondo não estava interessado num julgamento moral, mas num retrato social, numa demonstração de que a violência é devastadora e não apenas para as vítimas. Um cartaz de promoção de Pátria em Espanha foi, aliás, motivo para um daqueles movimentos, cada vez mais frequentes nas redes sociais, de apelo ao cancelamento de subscrições da HBO. O cartaz punha em pé de igualdade a vítima assassinada, corpo largado na estrada, à chuva, e um suspeito caído no chão de uma sala de interrogatório, prostrado pelo abuso policial da força. Coincidência ou resposta à polémica, o trailer divulgado depois disso abria pondo água na fervura, com números: “Mais de 800 assassinatos. Milhares de feridos. 52 anos de terror”.

Aitor Gabilondo não se moveu um milímetro. E, mesmo sem equivaler quem mata a quem morre, não abdica de explicar que o que aqui se faz é pintar o complexo quadro emocional, embora também racional, o labirinto interior em que se movem ambos os lados. Diz ele ao El País: “Nesta história, há um terrorista que, do meu ponto de vista, é insuportavelmente humano. Se ele fosse apenas um psicopata, não criaria uma ligação connosco. Mas ele tem empatia pelas coisas, pelas pessoas, pela sua mãe. Tem sentimentos. Como é que alguém que tem sentimentos é capaz de dar um tiro em alguém?” É o que gostaríamos de saber.

HBO. Dom (Estreia).

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