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Começou por ser uma oficina, transformou-se num quase-disco e agora é um concerto-espectáculo para toda a família. Entrecruzado com as visões e versões cénicas de Joana Craveiro, o projecto musical de Ana Bento e Bruno Pinto, Sophia (ou a Mulher-Palavra-Mar-Dança-Nas-Nossas-Cabeças-Construindo-Cidades-E-Utopias), está prestes a subir ao palco do São Luiz. Entre a palavra e o som, evoca-se a liberdade da poesia e desafia-se a plateia a sair à rua, para lutar por cada coisa e para ver cada coisa como se fosse a primeira vez. A estreia para as famílias está marcada para este sábado, 20 de Janeiro.
“O nosso processo criativo foi atípico para os dias que correm, em que tudo é muito rápido e efémero e, enquanto artistas, temos de estar sempre a criar coisas novas. Mas este trabalho em particular nasceu do privilégio que eu e o Bruno temos, que é o de trabalharmos na Casa da Música. De dois em dois anos é-nos encomendada uma oficina nova, que fica precisamente dois anos em cena, e o que aconteceu foi que, no final, tínhamos um repertório novo, que apresentámos enquanto concerto e que, depois, sentimos que poderia crescer”, revela-nos Ana Bento, co-fundadora da associação Gira Sol Azul, juntamente com o fotógrafo Luís Belo e os músicos Bruno Pinto e Joaquim Rodrigues.
Na hora de desafiar a pessoa certa, Joana Craveiro, do Teatro do Vestido, surgiu como a escolha óbvia. “Foi a nossa cereja no topo do bolo, porque o seu trabalho e pensamento tem muito a ver com a vida e a obra da Sophia, com uma forma de estar na vida de constante inquietação, de não esquecer o passado com os olhos no futuro, de não calar”, esclarece Ana Bento. “Na verdade, quando me foi feito o convite, o concerto já existia. O que fiz foi compor a dramaturgia, para que fosse um espectáculo coeso sobre o universo de Sophia de Mello Breyner. Todos os temas [musicais] são poemas da Sophia, excepto o penúltimo, que foi escrito pela Ana”, acrescenta Craveiro, que assina a direcção cénica. “Foi preciso trabalhar nas transições, nos textos que juntavam uns temas aos outros, e contextualizar a Sophia de Mello Breyner como esta figura que habita, ao mesmo tempo, o real e o irreal.”
Como é que o quotidiano e a vida pessoal de Sophia entravam na sua poesia, ou a condicionavam? As cartas trocadas entre Sophia e o também poeta Jorge de Sena revelam muitas curiosidades, explica-nos a encenadora. “Gosto muito desse livro e trouxe-o para os ensaios”, confessa, referindo-se a Sophia de Mello de Breyner e Jorge de Sena – Correspondência 1959-1978. Aí aprendemos, por exemplo, que Sophia não gostava realmente de escrever cartas, preferia falar ao telefone. “Dizia mesmo que não era boa a escrever cartas, como se isso fosse possível, e nós trouxemos isso para esta versão do concerto, que agora é também é um espectáculo [de teatro] e que tem muito a ver com o que eu faço, com a memória, com coisas antigas, coisas velhas, coisas com História.”
O encontro entre a música de Ana Bento e Bruno Pinto com o universo dramatúrgico de Joana Craveiro e a sua forma de pensar resultam numa peça plurifacetada e multidisciplinar. “Ao princípio, até me perguntei o que teria para contribuir, porque o concerto já estava tão interessante, mas a Ana acreditava mesmo que o projecto podia crescer muito, e de facto desde o primeiro dia que tive coisas para partilhar, para dizer, para articular e para escrever”, conta. “Claro que ajudou o universo musical ser muito rico e os músicos serem todos incríveis. Não havia nada que eu pedisse que eles não explorassem. Por outro lado, já conheço a Ana e o Bruno há muitos anos, há uma cumplicidade artística muito forte e acho que isso se reflectiu.”
Em palco, Ana Bento (voz), Jasmim Pinto (voz e trompete), Joaquim Rodrigues (piano), Bruno Pinto (guitarra), Olívia Pinto (baixo) e Mário Costa (bateria) não só nos dão música, como conversam connosco. A quarta parede desaparece, a cena expande-se. De repente, Sophia – como a poesia – está em toda a parte. Nos figurinos e na cenografia assinada por Patrícia Costa, por exemplo. À volta dos instrumentos musicais, há livros, muitos livros, sapatos, móveis, plantas, um conjunto de chá, uma máquina de escrever, um retroprojector, recortes de uma vida. E as portas abrem-se para que possamos espreitar e ouvir as palavras que lhe sobravam nos bolsos.
“Não é que as palavras sobrem, é que as palavras faltam, ou o tempo falta”, diz Ana, encarnando Sophia e servindo de guia aos seus temas de eleição: o mar, as cidades, a resistência à ditadura e a à opressão, a liberdade e a poesia. A poesia sempre, porque para Sophia bastava olhar para as coisas para que ela se revelasse. Se a inspiração viesse, mesmo que a meio de tomar o café na praça, não haveria maneira de a impedir de se atirar ao lápis e ao papel. Nem os homens maus das gabardines, que a tentaram muitas vezes calar, foram capazes de lhe roubar a madrugada que ela esperava.
“De repente, lemos coisas da Sophia, discursos que ela fez, e pensamos ‘parece que é alguém que está a viver os dias de hoje, que está a falar sobre hoje’. Por um lado, isso é assustador, porque já passou tanto tempo desde que ela escreveu essas coisas que deveríamos estar noutro lugar. Quer dizer, estamos noutro lugar, mas ao mesmo há coisas que pensávamos que já tinham passado e de repente elas atravessam-se no nosso caminho e ficamos, eu fico um bocadinho assustada. Mas é preciso não perder essa consciência de que tem de se estar sempre atento, vivo, activo, sair à rua, regar, voltar a florir.”
São Luiz Teatro Municipal, Sala Mário Viegas. 20-21 Jan, Sáb-Dom 16.00. 3€-7€
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