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Timeleft: o sucesso meteórico dos jantares com estranhos

A aplicação Timeleft promete jantares com desconhecidos e tornou-se um fenómeno, em Lisboa. Inscrevemo-nos na lista de participantes e investigámos quem está por trás do projecto.

Escrito por
Ricardo Dias Felner
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No final do jantar, surgiu a “surpresa” anunciada. Os convivas à mesa foram convidados, através da aplicação, a juntarem-se a outros “timelefters”, num bar de Lisboa, o Go A Lisboa. Depois de algumas hesitações, decidimos ir todos juntos, aceitando a boleia da vegetariana do grupo, uma professora universitária em fase pós-divórcio. 

Viajámos apertados num utilitário de cinco portas, felizes e galhofeiros, sem dar demasiada importância ao odor intenso. “O melhor é abrirem as janelas, que eu andei a transportar gatos de rua”, avisara a condutora, voluntária numa associação de apoio a animais. 

Por esta altura, estávamos já unidos e solidários como um grupo de amigos de infância. Enfrentaríamos tudo juntos, incluindo um Citroën com cinco pessoas a cheirar a chichi de gato.  

À chegada ao Go A Lisboa, tivemos então noção da dimensão do fenómeno. O enorme rooftop em Alcântara, junto ao Palácio das Necessidades, estava à pinha, praticamente só com membros dos jantares Timeleft, recrutados de vários restaurantes de Lisboa que costumam dar guarida ao evento. De acordo com números veiculados nos dias seguintes no Instagram pelo Timeleft, mais de seis centenas de pessoas tinham estado presentes nesse encontro. 

Jantares sem swipe left
Se tem entre 30 e 60 anos e usa o Instagram saberá com certeza de que se trata. Apesar de terem sido criados em 2020, nos últimos meses, os jantares Timeleft inundaram o Instagram de posts patrocinados, publicitando “jantares com desconhecidos”. 

O lema alia comida a convívio, e os jantares ocorrem todas as quartas-feiras, em cerca de 30 restaurantes de Lisboa. Desde Setembro, a marca expandiu-se também ao Porto e anunciou a sua estreia em Paris para o fim desse mês – segundo dados do próprio fundador, Maxime Barbier.  

No horizonte da maioria dos convivas, estará a criação de laços amorosos, mas o Timeleft quer demarcar-se das aplicações de encontros, como o Tinder. A ideia é que aqui as relações são reais, saborosas, seguras e saudáveis.

Entre os seus slogans estão “Less texting, more tasting” e a semântica anda sempre mais à volta da amizade do que do sexo, promovendo a ideia de aventura em ambiente controlado, de socialização sem pecado. As imagens da publicidade no Instagram mostram quase sempre gente sofisticada e alegre – mais jovem do que a que estava no nosso jantar e com maior paridade entre sexos. 

Mas será mesmo assim? 

Algoritmo, qual algoritmo?
Horas antes, pelas 19.30, dava entrada no Season. Por momentos, fiquei confuso. Ninguém para me receber, uma série de mesas vazias e pessoas atarantadas à procura do seu grupo. 

Nessa manhã, tinha recebido uma mensagem com o nome do restaurante e o número da mesa, mas alguma coisa estava a bater errado. 

Num email do dia anterior, os organizadores do jantar indicavam que jantaria com um grupo de seis pessoas, falantes de inglês, com uma média de idades de 44 anos – conforme o inquérito de personalidade online, feito por ocasião da inscrição. 

Grupo à mesa
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Ora, rapidamente se percebeu que o algoritmo do Timeleft estava avariado. Já instalados na mesa, dois falantes de português, ambos abaixo dos 44 anos. Logo a seguir, chegam os outros dois convivas, duas mulheres, também elas mais novas, entre os 30 e os 40, portuguesas, também elas falantes de português. 

“Eu tinha pedido falantes de inglês”, comentou Natacha (nome falso, como todos os outros nesta reportagem), sorrindo, simpaticamente desapontada. A mesma declaração foi feita por outros convivas. A ideia era jantar com estrangeiros, era que o jantar os fizesse sair da sua bolha. O único que parecia num match perfeito era Marco, brasileiro de Minas Gerais. 

A conversa prosseguiu, com as apresentações a serem lideradas por Natacha, à frente de um projecto comunitário assente em apoios institucionais, globetrotter, há muitos anos a viver entre Portugal e o estrangeiro. Ajudou à fluidez das conversas que o álcool tenha chegado cedo. Em minutos, estávamos a beber um M.O.B Lote 3, branco, que agradou a todos.

Mais mulheres, muitas portuguesas
Na noite do meu jantar, olhando em redor, para as outras mesas, confirmava-se uma tendência para o Timeleft juntar mais mulheres do que homens e ser apelativa para pessoas mais velhas. De acordo com o Timeleft, 60 por cento dos participantes são mulheres. 

À nossa frente, uma mesa de seis, mas só preenchida com quatro pessoas, três mulheres e um homem, porventura todos já na casa dos 50 anos. Ao nosso lado, o mesmo desequilíbrio de género, desta feita com as idades uma década acima. No Timeleft, os sexagenários são frequentes. 

Falando da comida, já tinha estado no Season há uns bons anos e tinha sido só razoável. Olhando para a ementa, vi a mesma ideia de pratos para partilhar e criatividade q.b.. Desta vez, tudo me pareceu mais afinado. A superintender o menu, como sócio, continua João Magalhães Correia, o homem que, hoje em dia, podemos ver a cozinhar no Tricky’s.

A escolha dos pratos foi feita de forma colegial, sem sobressaltos. Na mesa, havia uma pessoa vegetariana, pelo que se procurou um compromisso. Couvert de pão de fermentação lenta; ceviche de corvina; croquetes de borrego; ovo trufado com cogumelos, puré e cebola frita; raviólis de abóbora e ricota com creme de grelos e avelã; couve coração grelhada com puré de caju e trigo sarraceno. 

Tudo bom ou muito bom, servido com competência. Numa noite em que a clientela seria flutuante – e, supostamente, estaria mais empenhada na psicologia do que na culinária, mais atenta a decotes do que a temperos –, o Season tratou as pessoas como clientes normais, não como serviço de evento, não como serviço de catering de casamento. 

Maxime Barbier, o francês do Timeleft
Ajudou que tudo fosse igual a outras noites. Nos jantares Timeleft, a conta é paga ao restaurante e dividida no final por todos, como se fosse um grupo de amigos a jantar fora. Pode haver variações, consoante o grupo seja mais ou menos comilão – e bebedolas –, mas, no caso, a factura por pessoa andou pelos 35€, com duas garrafas de vinho, valor em linha com o que a aplicação indicara como preço médio do jantar. 

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Onde ganha, então, dinheiro o Timeleft? Onde está o negócio? Para se inscrever num jantar, cada pessoa tem de pagar antecipadamente, via online, 12,90€ (eram 9,90€, em Agosto). Se forem 600 pessoas, mais 160 no Porto, cada quarta-feira – números da organização –, isso dá 9800€ por semana, 39 000€ ou 49 000€ por mês (consoante tenha quatro ou cinco semanas). 

Quanto a custos, a operação está montada de forma a funcionar praticamente sem recursos humanos e sem despesas. Ao longo da noite, não me cruzei com ninguém do Timeleft, em nenhum momento. Aparentemente, Maxime Barbier, o francês dono da aplicação, a viver em Portugal desde 2020, gere pessoalmente o negócio, a gestão e a comunicação – e ainda tem tempo para levantar pesos e fazer jogging junto ao Tejo, qual atleta profissional, bem como a dedicar-se a ensinar as massas a serem saudáveis e bem-sucedidas, através do aconselhamento no seu site DailyMax.

Segundo o próprio informou, em resposta a perguntas da Time Out, a empresa começou com duas pessoas, ele e o co-fundador, um luso-francês chamado Adrien de Oliveira. No início de Setembro, juntou-se uma “city manager”, que trata das relações com os restaurantes e que garante “que as experiências correm sem sobressaltos”.

Mas quem é Maxime Barbier? No seu site pessoal, Maxime diz que é alguém que trabalhou sete anos na indústria da noite e depois dez anos na indústria digital, como fundador da Vertical Station, grupo de media, dono da MinuteBuzz. Também se apresenta como alguém que gosta de desafios, como o que fez em Maio, ao correr 100 km em 13 horas. E assume-se como coach geracional e homem de objectivos e ambições, listando as suas dicas para a felicidade. 

Entre as 100 ambições que assume no seu site estão, entre outras já cumpridas, ter “tomado LSD” e “uma dose inteira de cogumelos alucinogénicos”, ter “nadado nu no oceano” e frequentado uma experiência com ayahuasca, ter criado e vendido uma startup e ter feito “a dança do Dirty Dancing numa festa”. Por cumprir, estão “aparecer na capa de uma revista”, “fazer amor num avião”, “passar um dia com um monge no Tibete” ou “ler 200 livros em 1000 dias”. 

Figura polémica em França
Mas há mais para contar. A figura de Maxime Barbier é controversa em França. Em 2014, Maxime Barbier ficou ligado ao plágio do vídeo de um norte-americano numa viagem louca para estar com a sua namorada, apenas durante umas horas. A denúncia de plágio aconteceu quando Barbier administrava o site MinuteBuzz, um canal popular entre os millennials franceses. O vídeo de três minutos intitulava-se “Por amor, ele fez 8500 km para passar 48 horas com a sua namorada” e o protagonista era o próprio Barbier, que depois conseguiria vendê-lo à Coca-Cola, antes de o escândalo do plágio rebentar. Com a denúncia feita pelo norte-americano plagiado, o vídeo foi apagado da internet. 

Em 2016, nova polémica: a TF1, o canal de televisão privado francês líder de audiências, compraria o projecto MinuteBuzz, ganhando uma posição maioritária, mas com Barbier ainda no barco. Os detalhes do negócio não foram tornados públicos, mas a imprensa avançou com uma aquisição no valor de nove milhões de euros. Mais tarde, em 2019, Barbier seria demitido pela TF1, por alegado incumprimento de contrato, não tendo sido alcançados os resultados prometidos.  

Maxime Barbier recusou culpas na quebra da relação, apontando o dedo à TF1, tendo a contenda seguido para os tribunais. Em 2020, as partes chegariam por fim a acordo. Segundo o jornal Frenchweb.fr, especializado em noticiário sobre a economia digital, a TF1 resolveu o litígio comprando 100 por cento da MinuteBuzz (Vertical Station), num acordo cujos contornos não foram revelados.

Neste momento, Barbier controla toda a operação do Timeleft. Nisto, inclui-se um marketing agressivo e criativo que, entre outras técnicas, faz uso repetido de reportagens sobre a aplicação, de posts pagos a influencers, mas também das ideias dos seus seguidores no Instagram, desafiados a inventarem slogans para a aplicação a troco de um ticket para o vencedor (12,90€). 

Barbier, aparentemente, controla inclusive a (não) emissão de facturas. Depois do evento, enviei um email para Adrien, que usava um endereço geral do Timeleft, a pedir o recibo da inscrição. Ora, foi o próprio Maxime Barbier quem respondeu do seu email pessoal: “We are a french company, we can’t do invoice with NIF. Sorry.”

Mais tarde, apresentando-me como jornalista, questionei Maxime Barbier sobre o não pagamento de impostos por parte da Timeleft, em Portugal. Barbier limitou-se a responder que, embora até ao momento só tenha operado em Portugal, a “Timeleft é uma startup francesa, criada em 2020, em Paris”, com a “ambição de se expandir rapidamente para as maiores cidades da Europa”. 

Amizade e terapia de grupo
É fácil perceber que a marca tem um enorme potencial, com grandes margens. Sendo um negócio real, que valoriza o contacto pessoal, funciona praticamente só com o telemóvel. O anfitrião da sessão, no meu jantar, era um QR Code inscrito num cartão colocado no centro da mesa. Esse QR Code remetia para uma série de perguntas, usadas como desbloqueadores de conversa. Quem fez as perguntas fui eu. 

Com o decorrer do jantar, e do vinho, houve momentos íntimos, alguns delicados. Falou-se de divórcios, de traumas familiares, de acidentes graves, de morte e de desamor – como se nos conhecêssemos há muito tempo. 

Quando chegou o polvo, o ambiente já era de terapia de grupo. Uma das pessoas contou que tinha stress pós-traumático. Outra que estava a lidar com a pressão para ter filhos. Outra com a solidão. Outra com a falta de solidão. Outra com ser workaholic. Outra com não ser workaholic. 

Uma das perguntas mais curiosas questionava os presentes sobre as aplicações de encontros, como o Tinder. Curiosamente, só uma pessoa tinha uma opinião positiva. De resto, a maioria tivera experiências “vazias” e “episódicas”. O que as fizera entrar no Timeleft, então? Seria assim tão diferente? Ideia comum: fugir da rotina, conhecer pessoas fora do grupo de amigos de sempre, em ambiente controlado. 

Trunfos e cartas fora do baralho
E assim foi. Quando o jantar acabou, fomos todos para o after party (versão seniores). À entrada do Go A Lisboa, cada elemento recebeu uma carta de baralho, que serviria para emparelhar com outra pessoa presente, com o mesmo naipe e a mesma figura. O jogo destinava-se a promover novas relações entre desconhecidos, criando novo frisson entre os convivas. 

Grupo
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De alguma forma, o grupo do jantar foi-se lentamente desconfigurando, ou porque se encontravam amigos antigos ou porque novas amizades se mostravam mais sedutoras.

Natacha estava agora num tête-à-tête com um francês. Maria, a professora universitária, juntava várias amigas que haviam acorrido ao evento, mas tinham sido colocados noutros jantares. Anabela lutava por chegar ao bar, completamente à pinha. Marco, por sua vez, parecia renascido e integrado no novo país de acolhimento, desdobrando-se em selfies e trocas de contactos. 

Criou-se então um canal de conversação no WhatsApp. Fotos foram descarregadas para memória futura, cumprimentos foram trocados. Mas, com o tempo, as comunicações desvaneceram-se. 

Já no fim da noite, de repente, por um acaso, encontrei duas amigas. Uma que já não via há dez anos. Outra há 20. Percebi então que o Timeleft não estava tanto a juntar “estrangeiros com locais” – um dos seus motes iniciais –, mas a juntar estrangeiros com estrangeiros, portugueses com portugueses. 

Ambas as minhas amigas tinham acabado de sair de relações longas, ambas estavam eufóricas e prontas a casar-me, mais do que a casarem-se a si próprias. “Encontrar alguém? Nem pensar. Não estou em condições de ter uma relação nos próximos tempos”, atirou Sofia, já cambaleante, enquanto se atracava a outra timelefter. “Vou-te apresentar a Francisca, é muito gira. Francisca, o meu amigo. Cuidado, ele é jornalista.” Francisca respondeu, “Olá, prazer”, sempre sem tirar a mão de uma das mamas de Sofia. “Já a conhecias, antes?”, questionei a minha amiga, ao ouvido. “Não”, respondeu. “Conheço-a há três horas”. 

Os diálogos pareciam tirados dessas séries com quarentões desinibidos. Com mais álcool, as pessoas soltavam-se – e já não interessava se havia trunfos no baralho. À saída, via-se de tudo o que se vê à saída de um bar. Pessoas sozinhas, pessoas em bando e casalinhos de 40 anos beijando-se como adolescentes no banco de trás do Uber, a caminho de uma nova vida ou de só mais uma noite.

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