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Uma ópera para a era do Instagram

Escrito por
José Carlos Fernandes
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A máscara funerária de uma mulher que se terá afogado no Sena há mais de um século inspira uma ópera que reflecte sobre o papel da imagem na sociedade do século XXI. As fotografias durante o concerto não só são permitidas como incentivadas.

Ter um rio junto à cidade oferece vantagens e certamente que muito do encanto e da tão louvada luz de Lisboa resultam da proximidade do Tejo. Mas um rio e as pontes que o atravessam podem também dar ideias aos suicidas e, nesse domínio, Paris, com uma trintena de pontes sobre o Sena, pode ser considerada uma cidade perigosa. No início do século XIX, as pontes ainda não eram 30, mas eram as bastantes para que algumas dezenas de pessoas se lançassem anualmente ao rio – só entre 1790 e 1801, foram resgatados das águas os cadáveres de 410 afogados anónimos, o que levou as autoridades municipais a criar uma morgue, no Quai de l’Archevêché, só para acolher estes corpos e expô-los ao público, a fim de poderem ser identificados e reclamados.

O número de afogados foi crescendo – foram 376 só em 1864 – e a nova morgue tornou-se num dos locais mais visitados da capital francesa, sobretudo aos fins-de-semana, até ser encerrada em 1907, passando a identificação dos mortos anónimos a fazer-se através de fotografias. O fascínio mórbido pelos afogados do Sena conheceu um pico por volta de 1900, com a divulgação da imagem de uma máscara funerária que corresponderia, supostamente, a uma rapariga resgatada do Sena na década de 1880 e cuja beleza e expressão serena, animada por um sorriso enigmático (falou-se em Mona Lisa), teria levado um dos médicos legistas a imortalizá-la. Não foi possível apurar a veracidade desta história ou a identidade da mulher usada como modelo, mas as cópias e fotos da máscara tornaram-se “virais” na Paris de então e ultrapassaram fronteiras, convertendo “L’Inconnue de la Seine” num ícone de moda entre as raparigas alemãs.

A sua influência alastrou ao cinema, bailado e literatura (o romance A Desconhecida, de Reinhold Muschler, inventou um amor trágico entre uma rapariguinha de província e um diplomata britânico para explicar o suicídio) e o enigmático rosto acabou, em 1958, por servir de modelo ao primeiro manequim para exercícios de reanimação cardio-respiratória. A sua sombra estende-se até aos nossos dias, nomeadamente na canção “L’Inconnue”, do álbum de 2018 dos Beach House.

Nesse mesmo ano, em 14 de Novembro, estreava em Kortrijk, na Bélgica, a ópera Icon, com música de Frederik Neyrinck e libreto de Sabryna Pierre, que recorre à história de “L’Inconnue de la Seine” para reflectir sobre o fascínio pelas imagens, que, embora conheça hoje extraordinária expressão, potenciada pelos meios de comunicação instantâneos e globais, tem antecedentes bem antigos. Em Icon, as personagens em palco fotografam-se e as imagens assim obtidas são de imediato projectadas em cena, aliadas a outras fotografias e vídeos, num espectáculo multimédia que foge aos cânones da ópera clássica.

A Fundação Gulbenkian, que foi co-produtora de Icon, irá agora recebê-la, no âmbito de uma tournée europeia que já passou por Amesterdão, Gent e Luxemburgo. A interpretação será da equipa que concebeu e estreou Icon, ou seja, Liselot De Wilde (soprano, no papel de Ícone), Tibo Vandenborre (actor, no papel de Sr. Morte) e o ASKO/Schoenberg Ensemble. A direcção será de Joey Marijs e a encenação do Atelier Bildraum.

Fundação Gulbenkian. Sex e Sáb 21.00. 15€

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