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‘Unearthing the Music’, um livro que partiu de Portugal para mapear a música do contra feita por toda a Europa

A “resistência sónica” em regimes autoritários, na segunda metade do século XX europeu, foi objecto de um projecto de investigação em rede. Portugal, ao contrário do habitual, entra em cena com o jazz e o punk. Rui Pedro Dâmaso explica porquê.

Hugo Geada
Escrito por
Hugo Geada
Jornalista
 Unearthing the Music
Mâris Bagustovs | Unearthing the Music
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Tudo começou com uma tentativa de criar uma enciclopédia digital sobre a música criada na Europa com a intenção de ir contra os regimes. Mas a colecção de textos compilada com esse propósito acabou por ganhar a forma de um livro, Unearthing the Music: Footnotes to Sonic Resistance in Non-democratic Europe (1950–2000), lançado em Março de 2025. Um volume de 624 páginas que reúne capítulos sobre como a música teve um papel de resistência cultural em contextos autoritários. Entre capítulos sobre países como a Polónia, Rússia, Espanha, Grécia, há dois sobre Portugal, sobre o impacto do jazz, por Rui Eduardo Paes, e da cena punk, assinados por Paula Guerra e Ana Oliveira.

Falámos com Rui Pedro Dâmaso, co-autor do livro (juntamente com Alexander Pehlemann e Lucia Udvardyova) e director do projecto Unearthing the Music, mas também co-fundador da associação cultural OUT.RA, responsável pela organização de festivais como o OUT.FEST – e que assinou o prefácio do livro – sobre a criação deste trabalho e a herança que esta música de protesto deixou no nosso país. “Em Portugal, procurava-se evitar ao máximo qualquer agitação ou inovação. A experimentação era mal vista e ainda hoje o é”, diz. Mas garante que estamos melhor, em termos criativos, estamos melhor do que Espanha, por exemplo. Muito melhor.

Como é que surgiu o projecto e como é que se materializou neste livro? 
Este trabalho foi o primeiro projecto de âmbito europeu em que a OUT.RA esteve associada – e logo como líder. Ele teve dois ciclos diferentes. O primeiro começou entre 2017 e 2018, em que a ideia era fazer uma pesquisa sobre as músicas experimentais na chamada Cortina de Ferro, na Europa de Leste, na segunda metade do século XX. Mais tarde, expandiu-se para uma versão mais alargada, já com financiamento da Europa Criativa; manteve o mesmo tópico, mas alargado também aos regimes de Portugal, Espanha e Grécia. 

Porque é que foi tomada essa decisão? 
Porque também são regimes fechados que existiram na Europa, nesse período, e que são um bocadinho menos falados. Mas também para mostrar que tinha havido outros regimes políticos que cortavam a liberdade de expressão e a criação; que também existia música potencialmente interessante feita nesses períodos. Foi um projecto que durou entre três e quatro anos de investigação liderada por nós, com parceiros em mais quatro países europeus e uma série de ramificações mais informais.  

Que frutos deu este trabalho? 
Este trabalho deu origem a um site que tem uma base de dados com vários artigos sobre muitos destes artistas, movimentos, editoras, música para ouvir e imagens. É como uma Wikipédia de música experimental. Mais tarde, deu origem a dois discos de compilação em vinil e, agora, a este livro. Também foram feitos vários eventos, concertos, conferências. 

Acha que há potencial para continuar a desenvolver trabalho? 
Isto foi um projecto de algum fôlego em que nos metemos, mas acabou por crescer sempre que abríamos uma porta. É um mundo muito vasto e acabamos sempre por ficar pela superfície das coisas porque existem muitas camadas, muitos músicos, muitas histórias interessantes ligadas a este tema.  

O que é que acha que a apresentação do livro vai trazer ao projecto? 
A edição deste livro permite-nos ganhar um novo fôlego, porque também vão ser feitas algumas apresentações ligadas ao livro em vários países. Isto pode suscitar um novo interesse para aquilo que foi o nosso trabalho e quem sabe dar a oportunidade para continuar a investigação no futuro. 

Focando um pouco mais nos capítulos sobre Portugal. É feita uma análise sobre como a música funcionou como um objecto de resistência e como ela evoluiu depois da queda da ditadura. Quais são as principais diferenças entre esse período e o que vivemos agora? 
São dois períodos completamente diferentes. O livro olhou para o impacto do movimento punk e jazz, o período de transição após a queda do regime e até faz uma comparação com o que aconteceu com Espanha. Haveria ainda mais para dizer se tivesse focado no que aconteceu durante a ditadura. Mas uma das coisas que cedo percebemos, quando começámos a fazer este projecto, foi que a realidade que se vivia na Península Ibérica era completamente oposta à do Bloco de Leste, porque lá houve um investimento muito grande naquilo que era entendido como inovação e experimentação, mesmo que tenha acontecido por razões políticas.  

Aqui, vivia-se o contrário. 
O panorama era exactamente o inverso. Em Portugal, procurava-se evitar ao máximo qualquer agitação ou inovação. A experimentação era mal vista e ainda hoje o é. O trabalho de certos músicos com tendências mais vanguardistas, em Portugal, é muito mais rarefeito, sobretudo antes da ditadura. Mesmo depois da queda do regime, esse panorama não mudou assim tanto. Não havia instituições, não havia financiamentos, não havia espaços, nem uma cultura de incentivo à experimentação e é por isso que se calhar o punk e até certas coisas mais ligadas à pop acabaram por ser os melhores territórios de experimentação, expressão e de contestação em Portugal. A nossa vanguarda demorou muitos anos a ser construída, salvo alguns casos individuais. A construção de uma cena de música experimental em Portugal é uma conquista muito recente e é conseguida através da agregação de comunidades e gerações. Esta história em Portugal, de músicas mais declaradamente experimentais, tem de ser escrita já a partir do ano de 2000 e não até lá, que é onde este projecto e o livro terminam. O panorama que vivemos hoje é incomparavelmente mais rico. 

E mais livre também. 
Tem sido feito trabalho nesse sentido. De criar espaço para algo que é verdadeiramente experimental e vanguardista. Que não está assim tão preocupado em saber onde é que chega, mas que quer fazer processos diferentes. Na minha opinião, e obviamente como pessoa que trabalha na área, nesse aspecto, hoje em dia, o cenário da música experimental em Portugal é tão ou mais rico do que em muitos outros países europeus, muitos deles até com uma dimensão incomparavelmente superior à nossa, do ponto de vista da população, do mercado e das oportunidades. Mas comparando Portugal com Espanha, que é cinco vezes maior do que nós, diria que temos muito mais música interessante por metro quadrado, é quase incomparável. É uma das várias conquistas que este pequeno rectângulo conseguiu nas últimas décadas.  

Comparando com Espanha, que é cinco vezes maior do que Portugal, temos muito mais música interessante por metro quadrado, é quase incomparável.

Já tinha mencionado o capítulo que abordou a música punk em Portugal. Achei interessante a comparação com Espanha e como este circuito no nosso país se manteve anti-sistema e, por isso, não teve tanto sucesso comercial. Acha que o circuito punk continua fiel a estas raízes? 
Há muito que se pode dizer sobre o punk enquanto fórmula, identidade contestatária ou simplesmente como um género musical como outro qualquer, e que também tem algum lifestyle associado. O que quer que exista de música punk, hoje em dia, não sei se é assim tão relevante para estas questões da experimentação e da contestação. Acaba por ser só uma coisa já muito cristalizada. Há muito mais atitude punk numa série de outras músicas que nunca seriam punk enquanto género musical. Não só em Portugal como noutros sítios.  

Que estilos é que acha que têm essa herança? 
Esse espírito Do It Yourself se calhar existe muito mais nas músicas experimentais, por exemplo, do que naquilo que podia ser associado a música punk. Todos os estilos tendem a cristalizar e a ficarem um bocado fechados em si. Acho que é mais uma questão de atitudes subjacentes que podem essas manter-se, transitar e depois darem asas a músicas muito diferentes daquelas feitas há décadas. Mas se calhar até há uma ligação de espírito e atitude que até faz muita falta hoje em dia. Não sabemos aonde é que isto vai parar e quão contestatária e explícita a música tem de ser. Mas diria que o punk enquanto género e estilo musical já não é assim tão chamado para esta conversa hoje em dia. As heranças de postura e de espírito, essas sim, são – e mantêm-se noutros quadrados estéticos.

Hoje em dia, há estilos, como o funk brasileiro, que conseguem manter essa postura contestatária e de afirmação pessoal. 
Sim, é isso. Se calhar, o punk, quando surgiu, trouxe uma afirmação pessoal via um colectivo. As coisas nunca são literalmente iguais. O funk é um exemplo interessante, se bem que talvez seja mais hedonista do que colectivista. Mas tudo o que contribui para uma afirmação de uma forma de estar e de viver o mundo – desde que seja relativamente não auto-destrutiva – é importante e tem certamente heranças dos movimentos punk. Podem parecer opostas do ponto de vista estético, mas tem esses actos sociais em comum e as mesmas repercussões sociais. 

No prefácio, refere que neste trabalho não havia a intenção de encontrar o kitsch, referindo, por exemplo, a tentativa dos russos de fazerem música disco. Mas deparamo-nos com objectos interessantes, como a capa dos Crise Total em que surge António Guterres com uma crista. 
Eu ainda me lembro quando esse disco foi lançado [risos]. Mas fiquei contente de ter aparecido no livro porque muitas pessoas de gerações mais novas podiam nem sequer saber que existia.   

Nesta pesquisa, houve outros objectos que descobriu e que o marcaram? 
É muito complicado responder a isso. A questão do kitsch que eu menciono é esta mais ligada aos momentos em que os países de Leste tentavam ser como os americanos ou como os capitalistas, e que resultou, por exemplo, no pop soviético. Houve momentos em que esses países tentaram criar um circuito de consumo popular, mas o projecto focou-se mais naquilo que era mais subterrâneo e único. Este projecto não estava à procura de curiosidades para nos rirmos do lado da nossa cultura ocidental. O objectivo era procurar aquilo que era próprio e que só pode existir naquelas condições. 

Às vezes as coisas são tão más que é preciso que quem tem privilégio possa fazer alguma coisa em nome do colectivo. Isso aconteceu aqui no pós-revolução.

Também é interessante estarem a dar atenção a bandas praticamente desconhecidas, como Os Cagalhões, de Aveiro, e que nem sequer têm gravações disponíveis na internet.  
É possível. Repara, estamos a falar de uma altura em que gravar um disco não era como nos dias que correm. Os meios de produção não estavam no controlo das pessoas. Era muito amador. Não era qualquer pessoa que podia gravar um disco e distribuí-lo. O facto de estarmos a falar, agora, de uma banda de Aveiro, que nem sequer persistiu no folclore local, mostra que estes fenómenos eram tão underground que existe o risco de cair no esquecimento. A bem ou a mal, muitas das bandas que fizeram parte, em Portugal, deste movimento eram bandas de pessoas que estavam numa situação económica relativamente privilegiada. A situação do país era de tal modo que o próprio acesso a um instrumento musical era quase uma coisa para as elites. Isso diz muito daquilo que foi o nosso regime e a nossa ditadura. Do que foi a sociedade e a pobreza – não só cultural, mas económica. Isso é uma das lições importantes a nunca esquecer, não só deste projecto, ou deste tipo de trabalho, mas que às vezes as coisas são tão más que é preciso que também quem tem privilégio possa fazer alguma coisa em nome do colectivo. Acho que isso acabou por acontecer aqui em toda essa cena da pós-revolução. E é uma história interessante. Mostra que as coisas estavam longe de serem ideais. Mostra que não era qualquer pessoa que podia pegar num instrumento e expressar aquilo que tinha a expressar. Mas também que pessoas de posições mais privilegiadas podem de alguma maneira sentir um desconforto tal que são impelidas a tentar falar por todos ou a tentar agitar as coisas de alguma forma. 

Agora que editaram o livro, qual é que será o futuro deste projecto? Será que vão abordar outros estilos musicais, outros países... O que é que têm planeado? 
Não temos nada na manga. Um projecto destes, que se fez com bastantes meios, por um lado, pode ir servindo algumas iniciativas individuais. Periodicamente, ainda vamos recebendo alguns contributos. Por exemplo, podemos receber um disco dos anos 60 que acabou de ser reeditado e podemos colocá-lo na base de dados. Mas a continuação de uma investigação mais sistemática dependeria de haver meios para isso. Este é um projecto que começou em Portugal, mas foi sempre feito em rede. Só faz sentido continuar neste formato. Vamos ver, o passado não tem fim. Há sempre coisas para descobrir, redescobrir e voltar a enquadrar. Temos muito interesse em como o passado está sempre por ser escrito e há muitas lições a tirar. Continua a ser um projecto pertinente. Até porque nunca seria concluído de forma satisfatória. É uma iniciativa, é uma forma de olhar para as coisas, reconhecê-las, relacioná-las. Portanto, havendo possibilidades, talvez se continue e se faça outro livro ou mais compilações em vinil. Vamos ver qual é a vida útil deste livro e que portas é que abre. 

Unearthing the Music: Footnotes to Sonic Resistance in Non-democratic Europe (1950–2000). Spector Books. 624 pp. 28€

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