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Viver é assustador. "A Fera na Selva" dá profundidade ao pequeno auditório do CCB

Escrito por
Miguel Branco
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Com encenação de Miguel Loureiro, A Fera na Selva, conto de Henry James adaptado por Marguerite Duras, está no CCB de quinta a domingo.

Comecemos por imaginar aquele contexto social onde pessoas mais e menos conhecidas partilham uma mesa ou uma sala de estar. Nesse chá de amigos de amigos de amigos surge sempre aquele “a gente já não se conhecia?”. Conhecia, pois. Conheciam-se, neste caso. John e Catherine, na sala dos retratos do palácio da tia-avó de Catherine – pousio de uma família aristocrata nos arredores de Londres – esgravatam a memória, abrem gavetas. Bom, abrem é como quem diz, porque Catherine lembra-se de tudo. Foi em Sorrento, na popa de um barco a caminho de Nápoles, há dez anos. E também John se lembra agora de tudo, ele que julga ter esquecido porque há dias assim, mais mornos, pouco memoráveis, onde nada acontece. Um equívoco de John. Mais um equívoco de John. Nada acontece, o tanas. O tempo ameno só dura até Catherine lhe falar de uma confidência que John lhe fez, na altura, sobre uma obsessão que tem desde sempre, um fatal destino que um dia o atravessará, como uma fera na selva à espera do tempo certo para o apanhar.

Dúvidas desfeitas, eis que o mundo cai. Até porque, convenhamos, neste A Fera na Selva – conto de 1903 de Henry James que Marguerite Duras adaptou e que Miguel Loureiro encena agora no CCB – as certezas nunca enchem o peito. A interpretação cabe a Margarida Marinho e Filipe Duarte e é para ver no Pequeno Auditório de quinta a sábado. Depois de no ano passado ter feito Um Diário de Preces, de Flannery O’Connor, no Grande Auditório do CCB, Miguel Loureiro, abordado pela direcção artística da casa, achou que era mais interessante ser a mesma a propor-lhe um texto. E o encenador, por desconhecer as adaptações de Duras – estava por dentro sobretudo do teatro escrito originalmente pela francesa – aceitou de bom grado a sugestão.

Aqui o espectáculo proposto nada tem que ver com o exagero e caricatura, pelo músculo da cena, que Miguel Loureiro tanto gosta de fazer. “Interessa-me não tanto a questão da incomunicabilidade, do falhanço do amor, sempre presentes na Duras, mas da construção do enigma, de nunca ser claro, ao longo de seis quadros de conversação, do que é que eles estão a falar”, enquadra. E com toda a razão. Não há qualquer margem de espalhafato. Estamos num labirinto palaciano, entre telas e pequenas árvores, cadeirões com pinturas de outros tempos, um piano, pois claro, conjuntos de loiça caríssimos, sofás de pele. E por mais artefactos – talvez a quererem distrair-nos – que o cenário tenha, não há grandes corridas para além daquelas que são ditas. “A cena aqui estabelece-se no jogo das ideias, na retórica, gastar seis quadros a falar de algo que não se sabe bem o que é tem algo de muito virtuoso. O enquadramento cria uma sensação de labirinto, de um decadentismo. Tem que ter um bocado essa sugestão de luxúria visual, sendo que depois isso fica enquadrado e o que importa são os seis combates a dois que eles têm ao longo da peça”, esclarece.

No enredo, o reencontro de John e Catherine gerou uma amizade inigualável, o protocolo formal aristocrático vai morrendo com o crescimento gradual da sua intimidade. Espera-se muito. Esse enigma meio imperceptível que é a tal fera, o destino fatídico de John, é o mote para diálogos ricos, contidos e linguarudos, entre a filosofia e o patético de ver alguém sofrer de uma forma tão madrasta. O pior é que John nem se apercebe, absorvido pela sua obsessão, que a fera de Catherine era o desejo de amor entre ambos. E entretanto a vida passa. 

CCB Qui-Sáb 21.00. 8-15€. De Henry James (adaptação de Marguerite Duras). Encenação Miguel Loureiro. Com Filipe Duarte e Margarida Marinho. Cenografia Tomás Colaço. 

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