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Jornalista, Critico Gastronómico, Ricardo Dias Felner
©Inês FélixRicardo Dias Felner autor de 'O Homem Que Comia Tudo'

Pré-publicação: Foodies, esses chatos

“O Homem Que Comia Tudo”, de Ricardo Dias Felner, é publicado nesta sexta-feira pela Quetzal. Este é um dos textos que integra o livro.

Escrito por
Ricardo Dias Felner
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Toda a gente gosta de comida, mas nem toda a gente gosta de comida da mesma maneira. Entre ir jantar fora ou sonhar com comida, entre seguir o Masterchef ou ter à cabeceira um livro chamado Alface (existe), vai uma distância que é, frequentemente, a distância entre uma pessoa interessante e uma pessoa chata. O pior disto é que não há nada a fazer. Ser maluquinho da comida – ou foodie ou gourmet ou gourmand – é uma doença crónica que se agrava quanto mais se come e mais se sabe sobre comida. A minha degradação é a prova disso. Quando me convidaram para a Time Out, andava eu a divertir-me com este blogue nas horas vagas do jornalismo. Fiquei preocupado. Como esses atores porno enfastiados com o métier, questionei-me se não perderia o interesse pela gastronomia no momento em que o assunto se tornasse obrigação. Fiquei ainda mais viciado. Hoje em dia, quase todas as minhas decisões são tomadas em função da comida. É a comida que faz com que nunca tenha passado férias em Amesterdão (há ervas melhores) mas conheça muito bem os mercados de Agadir. Foi a comida que me levou a desenhar um mapa das melhores padarias de Paris e a visitar cada uma delas. Foi a comida que me enfiou num avião até Chengdu, nos confins da China, um sítio onde toda a gente vai ver pandas e eu fui comer pimenta-de-
-sichuan.

Quando não estou a caminho de comida, é provável que esteja a caminho de livros de comida. Entro numa livraria e a primeira banca onde ponho os olhos é na de livros de cozinha. Como a oferta nacional é curta, abasteço-me também no estrangeiro: a wish list da Amazon tornou-se praticamente monotemática e sorve-me mais dinheiro do que a EDP e a Sport TV juntas. Hoje, as minhas estantes ainda têm mais Cosserys, Chandlers, Bellows e Eças do que livros de gastronomia, mas a continuar assim não será por muito tempo. Em matéria de cinema, se procuro um filme na Netflix com a minha namorada, os dois abraçadinhos no sofá, ambiente romântico, acabamos muitas vezes desavindos. Hoje já evito sugerir o Chef’s Table, mas entre dois bons documentários prefiro um que tenha alguma coisa que se coma (The Search of General Tso é obrigatório). A situação tem terminado com ela a ver o Downton Abbey e eu a ler os diários do René Redzepi. De resto, a coisa mais emocionante que faço é ir ao mercado. Falo mais tempo com a minha peixeira do que com os professores dos meus filhos. O mesmo relativamente ao senhor Carlos, amigo merceeiro a quem devo ter-me ensinado a comer abacates e a ver se a fava está velha. Mas não se iludam. Apesar de ter bons amigos entre os vendedores, o foodie pode ser terrível para quem lhe dá comida.

Veja-se o seguinte episódio.

O talho do supermercado do El Corte Inglés estava calmo, só eu e o talhante. Fui lá de propósito para comprar carne de porco do Ti António, um criador de Carreiro de Areia, perto de Torres Novas. Mas o momento de tranquilidade prestava-se a mais compras e a esclarecer dúvidas. E havia muitas. Estava eufórico por ter o talhante só para mim e queria saber quanto pesava o bicho, onde pastara, o signo, se era novo ou velho.

– Desculpe, esta aba de vaca barrosã será de um animal com que idade?

O talhante era igual ao Vítor Gaspar e tinha um cutelo na mão. Assim que fiz a pergunta, parou de o afiar, estático.

– Isto não é de uma vaca. É de um boi. A carne de vaca não é boa para comer. Quer saber a idade do boi, é isso?
– Sim, é isso. Prefiro os mais velhos.
– Oiça, isso são tretas que se leem na Internet. Esta carne é de novilho e é excelente. Mas para lhe explicar porquê levaria muito tempo. E tempo é coisa que não tenho.

Pimba. Tautau ao foodie. Bofetada no menino a brincar às comidas. Vai buscar. Às vezes é mesmo isto que merecemos.

Fico igualmente extasiado com comida viva, plantas, bichos, animais. Se vou em viagem de carro e passo por um boi, começo logo a apreciar os cortes: o lombo, o acém, as abas gordas. No Oceanário, toda a gente de volta dos tubarões e dos peixes coloridos e incomestíveis e a única coisa que me detém são as garoupas gordas, as douradas, os pargos.

É certo que não estou só na loucura por comida. Alguns foodies, muitos foodies, andam nisto há mais tempo do que eu e são ainda mais intensos do que eu. Há dias jantei no mesmo restaurante que muitos deles, por ocasião do festival Sangue na Guelra, uma degustação com uma vintena de pratos. Na mesa estávamos quatro pessoas, três delas não conhecia. E com quem é que passei a maior parte do tempo a falar? Com alguém que conheço há 30 anos: o Miguel Pires, do blogue Mesa Marcada. Apesar de passar a vida a comer em restaurantes de alta cozinha um pouco por todo o mundo, o Miguel dava cada garfada como se fosse a última – e eu com ele, debatendo sobre a excessiva presença de gamba do Algarve no menu ou sobre o notável equilíbrio das plantas marítimas com o goraz.
Dito isto, há piores pessoas. Quando o foodie sincroniza com o cagão, temos uma tragédia social. Há dias, ao balcão do Go Juu, fui confrontado com um elemento da espécie – dois, na verdade.

Sabe-se que os balcões estão para os malucos da comida como os postes de alta tensão estão para as cegonhas. E lá estavam eles, um casal de sexagenários gourmands (não foodies, atenção), habitués do Go Juu, poisados nos seus lugares do costume, asas bem abertas, a tratar o chef por chef e a receber do chef tratamento de chef. Note-se que, para um sexagenário gourmand, a comida é apenas uma variável, porventura não a mais importante. À frente de tudo estão o serviço, o estatuto, a marca, a inscrição num certo guia vermelho. Um sexagenário gourmand, sempre que vai lá fora, e vai muito, googla os estrelas Michelin do sítio e reserva mesa mesmo antes de esticar as pernas na executiva da aeronave. Para um sexagenário gourmand, o Go Juu (o melhor japonês de Lisboa, por estes dias) é apenas uma cantina assim boazinha.

Ora, sabemos que numa cantina é permitido falar alto. E foi o que o casal fez. Ele contava à esposa que tinha almoçado num sítio onde estava a Assunção Cristas e vários outros ministros («Isso são ex-ministros, querido», corrigiu ela, e bem), mas as coisas não tinham corrido bem. Que coisas?

O foie? Não.
O lavagante? Não.
A meunière? Não.

A palavra ao gourmand cagão: «Fui almoçar com o Zé e encontrei-o à chegada, no parque de estacionamento, de mocassins e sem meias. Imagina, sem meias.» Um drama. Com consequências. «Chegámos ao restaurante e deixaram-nos ali de pé, plantados. Um empregado que não era ninguém disse-nos que tínhamos de esperar. Repara: tu sabes que, sempre que lá vou, dou uma boa gorjeta ao porteiro e outra ao empregado.» Ela sabia. Vexame. O ultraje teria de ser reparado. Era preciso sacar da bomba atómica: a queixinha à alta instância. «Mandei chamar o chef e ele deu-lhe uma descompostura. Remédio santo. Começou logo tudo a correr bem.»

Pronto. Fim. Pensei eu. Mas não.

Ao lado, também ao balcão, estava um belga que veio cá «lançar uns projetos». Outro gourmand. Tinha trocado com ele umas impressões sobre o facto de a barriga de atum, nesse dia, não ser tão gorda como de costume (uma coisa muito foodie de se dizer). Depois, a conversa resvalou para outros restaurantes japoneses de Lisboa e de como Portugal era um país privilegiado para sushi, por causa da qualidade do peixe. Nesta altura, o casal sexagenário cagão parecia desligado. Puro engano: simplesmente captava tudo em silêncio, à espera de uma aberta. Quando citei o Kanazawa, o japonês de Pedrouços, os dois transformaram-se em rottweilers a latir gourmanzices, os dois apostados em dar cabo de mim. «O Kanazawa é do mais sofisticado que há.» O Kanazawa isto, o Kanazawa aquilo, blá-blá-blá, se quiser ir lá para a semana já não consegue vaga, e blá-blá-blá, dirigindo-se em francês para o belga que, embora não partilhasse com eles a nacionalidade e a língua, partilhava o vestuário blazé rico, marcado pela camisa do cavalinho. Estava eu no meio daquela linha de apoio ao imigrante, recolhido no meu anmitsu (a melhor salada de frutas desta cidade e a coisa mais refrescante que se pode comer no mundo), quando os três começaram a contabilizar os estrelas Michelin que cada um tinha no currículo.

Muito aborrecido.

Manuel Vázquez Montalbán tem um livro que se chama Contra los Gourmands, longo ensaio sobre gastronomia, onde achincalha o gourmand cagão. Não vou tão longe, mas gosto da distinção clássica que diz que um gourmand difere de um gourmet por o primeiro querer comer do bom mas não saber como se faz do bom. Antes gourmet.

Mais comida em livro

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