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©Sgt. Samuel Guerra/Wikipedia

Como um livro previu o fenómeno Trump...há 82 anos

Em "Isso não pode acontecer aqui", Sinclair Lewis imaginou um candidato populista que abomina a imprensa livre e defende o regresso aos valores que fizeram a América grande.

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Nos EUA, um candidato populista que abomina a imprensa livre e defende o regresso aos valores que fizeram a América grande torna-se presidente e converte o país numa ditadura. Apresentamos um romance publicado... há 82 anos.

O sobrevalorizado A Conspiração Contra a América (2004), de Philip Roth, não só tem escassos méritos literários como nem sequer se funda numa ideia original: 69 anos antes de Roth ter ficcionado uma América fascista e antisemita presidida por Charles Lindbergh, já Sinclair Lewis (1885-1951) publicara It Can’t Happen Here, que narra a ascensão do demagogo Berzelius Windrip à presidência dos EUA e a forma como assumiu o controlo de todas as instâncias do poder e impôs uma ditadura de inspiração fascista.

Apesar de ter sido distinguido com o Nobel da Literatura em 1930, Lewis é hoje autor quase ignoto em Portugal e os raros livros seus que foram traduzidos estão esgotados há muito. A razão para Isso Não Pode Acontecer Aqui surgir agora nas nossas livrarias é, como se escreve na contracapa, ter-se tornado “uma obra profética após a eleição de Donald Trump”. Com efeito:

1) Windrip é um demagogo cuja rudeza e falta de tacto têm o condão de aliciar as massas que desconfiam dos “intelectuais”: “era banal, quase iliterato, um mentiroso facilmente detectável e, nas suas ideias, quase idiota; [o seu] humor era o cinismo matreiro de um balconista de loja de província. Não havia certamente nada de estimulante nos seus discursos, nem nada de convincente na sua filosofia”.

2) Windrip é um populista que convence os eleitores de que, ao contrário dos outros políticos, só pensa nas necessidades do povo e não em satisfazer grupos de interesses.

3) Windrip entende que “os directores de jornais [...] estão sempre a conspirar em formas de poderem engendrar as suas mentiras, divulgar as suas posições pessoais e encher os seus ávidos blocos de notas, caluniando pelo caminho estadistas que deram tudo pelo bem comum”.

4) Windrip é contra o comércio livre e a favor de uns EUA auto- -suficientes: “Não ficarei satisfeito enquanto este país não conseguir produzir todas e cada uma das coisas de que precisamos [...] e assim mantermos os dólares em casa”.

5) Windrip rejeita o multilateralismo e os tratados internacionais.

6) Windrip impinge aos eleitores o retrato de uma América em decadência, que só ele será capaz de reerguer: “A vós e só a vós, peço ajuda para voltar a fazer da América um país orgulhoso e rico”.

Mas também há diferenças entre Trump e Windrip: Trump é narcisista, irascível, imaturo e, logo, muito perigoso, mas não deu sinais de perfilhar ideologias totalitárias de direita, enquanto Windrip se assume como fanático antibolchevique e anti-semita e, após ser eleito, toma o poder de assalto por métodos afins dos usado por Hitler – com os MM (Minute Men) decalcados das SS e SA nazis, a abater ou internar em campos de concentração quem ouse discordar da “linha oficial” – e instaura um Estado corporativista ao estilo do fascismo italiano.

O excesso de esquematismo da narrativa, claramente inspirada pelos eventos na Alemanha pós-1933, é contrabalançado pela prosa elegante e irónica e pelo espírito insubmisso. Uma leitura instrutiva em tempos em que o populismo campeia e a extrema-direita ganha força no seio das sociedades abastadas, egocêntricas e desprovidas de memória.

Isso não pode acontecer aqui

**** (quatro estrelas)

D. Quixote

440 pp

17,01€

Três autores proféticos

1. Arthur C. Clarke

Podemos não estar exclusivamente situados no ano 2001, numa referência a 2001, Odisseia no Espaço, mas o livro que inspirou o filme de Kubrick aborda a revolução nos media, tanto ao nível do imediatismo da notícia como a novidades nas suas plataformas.

2. Aldous Huxley

Admirável Mundo Novo, uma das obras mais influentes no século XX, alude a uma sociedade capitalista em estreita dependência das drogas, vergada à escravatura da razão. Os números do consumo de antidepressivos falam por si.

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3. E. M. Foster

Bem se pode dizer que o britânico apontou para a era da internet em 1909, ano de A Máquina Pára. Foster perspectiva um mundo onde as interacções humanas são mediadas por ecrãs. Onde é que já vimos isto?

Outras leituras

Bangladesh e outros contos de Eric Nepomuceno
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