Erling Kagge
Fotografia: Manue lManso
Fotografia: Manue lManso

Entrevista a Erling Kagge: Pode haver silêncio na era do ruído?

Erling Kagge veio a Lisboa dar entrevistas sobre o seu livro e deleitar-se com o sol da cidade. Fomos ouvir o norueguês sobre “Silêncio na Era do Ruído”

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Refere-se, no livro, ao “silêncio interior”. É algo que pode ser escutado pelos outros ou é uma coisa estritamente pessoal?

Esse silêncio, interior, é um processo individual, no sentido em que o teu silêncio será diferente do de toda gente. E talvez até mesmo o teu silêncio de amanhã venha a ser diferente daquele que experimentaste hoje. É no silêncio que nos encontramos a nós mesmos.

Refere também a composição 4’ 33’’, de John Cage, em que os músicos seguram nos instrumentos, sem tocarem…

Penso que Cage fez essa composição, também graças ao seu sentido de humor, para apreciar as reacções de quem assiste à apresentação da peça. Mas o ponto central é que o silêncio total não existe. Talvez no Espaço, onde não existe ar.

Foi modelo de uma campanha publicitária da Rolex. E escreve que o silêncio é um luxo. Também o tempo….

O tempo e o silêncio podem estar relacionados. Sim, o tempo é o maior luxo, mais do que todas as malas, casas ou automóveis que se possam comprar. O silêncio também, porque não é fácil de conseguir – as máquinas de lavar, os carros, tendem a ser mais ruidosos. Olhando desse modo, não é só um luxo, tornou-se bastante precioso, raro.

Estabelece uma relação directa entre o som e ganhar dinheiro. Será o silêncio, simbolicamente, uma oposição ao capitalismo?

Desde a revolução industrial, o mundo tornou-se mais barulhento. Além disso, é um sistema que vai criando novas promessas de coisas para adquirir, a indústria gira em torno disso. Vivemos numa era de ruído, tudo ambiciona funcionar 24 h por dia. Criando ruído, claro… é uma realidade nova…

Qual é o papel da música nessa sociedade barulhenta que descreve?

Todas as recepções de hotéis, em todo mundo, têm música. Mas passa a ser ruído. Quando se escuta boa música, isso está relacionado com o tal silêncio, porque nos concentramos na música, não estamos a viver no passado ou no futuro, estamos a viver o instante. Quando comecei a pensar no livro, idealizei-o em torno do silêncio, depois mudou, comecei a pensar em termos de poderes viver a tua vida, não através de outras pessoas, não através dos teus aparelhos, sem ser dominado por expectativas ou distúrbios, uma existência focada no sentir, sem pensar demasiado no passado ou no futuro. Isso é o silêncio.

Refere no livro o trabalho da performer Marina Abramovic. O que destacaria do seu trabalho?

Acho que ela nos mostrou como o silêncio pode ser bastante ruidoso. Todos nós passamos muito tempo a pensar… sobre o passado, o futuro… isso cria ruído. No interior da tua cabeça. As performances de Marina Abramovic são sobre parar de pensar e sentir a situação, o momento presente.

Uma última coisa. Posso usar um pouco do seu tempo e pedir-lhe um autógrafo… em silêncio? … [entre comentários à edição portuguesa, escolhas do idioma a usar e outros gracejos, o silêncio resistiu menos de 10 segundos]

Crítica a Silêncio na Era do Ruído

Ler é, habitualmente, um processo individual e silencioso. Mas o silêncio a que Kagge se refere vai além da componente sonora – prende-se com um equilíbrio pessoal, uma fruição do espaço e do tempo, o combate à ansiedade e voracidade que nos conduzem diariamente (no trabalho, no uso das redes sociais, nas relações afectivas).

Kagge apela a uma concepção de vida algo artificial, tantas vezes defensável e defendida num plano teórico, mas dissidente das próprias práticas quotidianas de quem o faz. Um pouco à semelhança dos ecologistas radicais que se deslocam de avião. O tom do livro é um pouco new age (a maior dificuldade de caminhar no Pólo Sul terão sido os 50º Celsius negativos. E o segundo desafio mais difícil? “Estar em paz comigo mesmo”).

Contudo, a construção do raciocínio está bem alicerçada e lê-se com gosto e fluidez, encontrando-se várias referências artísticas (Rothko, John Cage, Marina Abramovic). Com formação em Direito e Filosofia, Kagee (n. 1963) é um explorador e montanhista norueguês (esteve no Pólo Norte, Pólo Sul e no pico do Evereste), editor, coleccionador de arte, modelo ocasional de publicidade.

“O contrário do silêncio é o cérebro a trabalhar.” Kagee replica a frase de Marina Abramovic (performer que permaneceu 512 horas em silêncio, numa galeria, acolhendo visitantes diante de si sem trocarem uma palavra) para ilustrar aspirações-limite. “A história de Nova Iorque foi sempre moldada pela ideia de ganhar dinheiro e de todo o ruído que isso implica”, escreve o explorador. Reflictamos. Em silêncio.

Erling Kagge, Quetzal, 160 pp, 15,50€, ***

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