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Fotografia: Arlindo Camacho

Gonçalo M. Tavares: "Uma nova mitologia tem de ter a máquina"

Um novo livro sem limites inaugura uma nova série, uma mitologia para o presente. Falámos com Gonçalo M. Tavares sobre "A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado"

Escrito por
Catarina Moura
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O mapa de cadernos de Gonçalo M. Tavares não é pequeno, é organizado e ganhou agora uma nova série, ou universo, como o autor gosta de lhe chamar. "Mitologias" é novo mundo de Gonçalo M. Tavares e o autor garante que vai ser um dos maiores e mais centrais. O primeiro livro é A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado e abre portas a uma espécide de actualização dos mitos, com tudo a que temos direito nos dias de hoje.

No final do livro há umas frases do Walter Benjamin que falam de já não termos muitas histórias que causem espanto mas termos muitas que nos chegam já explicadas, cheias de significados. Este livro quer retomar o puro espanto?

O espantoso é uma categoria que está a desaparecer rapidamente. A acessibilidade imediata a determinada informação é extraordinária mas pode diminuir essa capacidade da surpresa. E uma pessoa espantar-se é interessante. [A ideia de WB]é uma espécie de mote para as “Mitologias”: não há uma necessidade de explicação, há um conjunto de acontecimentos que têm uma energia própria, uma aceitação do destino, e portanto é uma energia totalmente diferente da informativa. A capacidade de espanto leva à investigação.

Este espanto é na óptica do utilizador/leitor?

Quando estou a escrever estou constantemente a espantar-me. Quando se coloca uma Mulher-Sem-Cabeça como personagem isto tem um movimento, portanto não sei o que vai acontecer quando esta Mulher-Sem-Cabeça se cruza com a Casa-das-Máquinas. E há cruzamentos que têm muita força, como quando a Mulher- -sem-Cabeça insiste que quer entrar no cinema: há aqui qualquer coisa forte que não entra no campo da explicação. Diz alguma coisa sobre o cinema, não diz nada de concreto, mas diz. E só é possível porque há esta lógica. Se estivesse a escrever de uma forma realista não conseguia dizer isto.

O que vai ser este universo das “Mitologias”?

Acho que vai ser um dos meus mundos mais centrais e maiores. Eu escrevo, guardo, publico às vezes passados anos, portanto tenho já uma noção do conjunto. “Mitologias” tem um pouco a ver com a ideia de uma narrativa rápida, com o prazer da narrativa tradicional em que as coisas acontecem rapidamente e sem explicações. Por outro lado, há aqui a ideia de um mundo com liberdade, em que um espaço pode ser uma personagem, por exemplo.

Como é que vês este universo em relação com os outros? Em especial com “O Reino”, tendo temas em comum – a loucura, o medo, a maldade?

É de alguma maneira um estudo do mal se calhar um pouco paralelo ao Reino. Enquanto o Jerusalém e o Aprender a Rezar... são um mundo realista, aqui é um mundo da possibilidade quase infinita. Mas ninguém vai ficar chocado com uma mulher sem cabeça. Aqui está muito claro que é algo do imaginário, é uma maldade quase infantil, no limite divertida. 

Ainda não esgotaste as imagens sobre estes temas?

Não sei, acho que aqui há um ponto de vista completamente diferente dos anteriores. Eu diria que aqui é mais a história da imaginação. Quando coloco outros pressupostos chego a pontos completamente diferentes. O quase tudo ser possível dá uma liberdade muito diferente. Mas o que me interessa é qualquer coisa que não mudará. Mesmo que faça um livro, sei lá, sobre o Japão ou sobre a Austrália, acho que o que me vai interessar provavelmente é o medo, a coragem, a excitação, a tendência para a violência, o estranho e o familiar.

Neste universo sem espaço nem tempo, como é que aparecem referências que nos situam na História – comboios, o avião, o Dr. Charcot?

Identificamos factos com a História, mas é sempre como se fosse uma História paralela, que não quer interpretar a outra. Aqui o tempo é um tempo colapsado e, apesar de nos podermos situar num determinado tempo, há acontecimentos irreais e há uma sequência narrativa mesmo nos factos históricos que não é a normal – o Ber-
-lim [personagem louca] anda como um fantasma no século XIII ou XIX e depois XVIII.

Como se deambulassem como o Ber-lim.

Sim, como se se tivessem desprendido da História real e pudessem ser recolocados numa outra mitologia. Vejo isto como pôr em movimento homens, animais, máquinas – acho que é uma das questões que me interessa mais: a mitologia que coloca a máquina no centro.

É uma espécie de actualização da mitologia? Numa fábula para a vida contemporânea há coisas essenciais, como a máquina.

Pois, acho que sim. Uma nova mitologia tem de ter como um dos centros a máquina, e o que me interessava era isso: a Casa-das-máquinas é uma personagem como é o Homem-do-Mau-Olhado e num determinado momento pode ser principal. Muitas personagens têm um nome que é uma acção (o Homem-Que...) e nesse aspecto é quase transformar um homem numa máquina. Como se atingissem o seu apogeu quando a concretizam.

Há episódios quase surrealistas. Por exemplo, o episódio em que uma avestruz devora a cabeça da Mulher-Ruiva deve ser dos episódios visualmente mais fortes. Qual a importância destas imagens tão fora de tudo?

É difícil pensar, não faço esse exercício. Com a avestruz há a questão de enfiar a cabeça na areia — aqui enfia a cabeça dentro de outra cabeça. Lembro-me de uma imagem num livro de animais de uma avestruz em grande plano e era assustadora e isso foi um ponto de partida. A avestruz transforma-se numa personagem e mais tarde vai voltar a estar presente. Aquela coisa de haver um pescoço enorme que termina numa cabeça pequena, mas com um bico muito agressivo: isso é estranho porque, no caso por exemplo de uma girafa é como se o pescoço tirasse alguma força. Pensando num cão, se o que morde está próximo do tronco é como se estivesse ali uma coisa compacta, mais poderosa; quando se começa a esticar parece que se está a tirar força. Em relação à avestruz o que eu sentia é que estranhamente, com um pescoço longo, aquele bico continuava a ser assustador. Por outro lado, há o facto de, de alguma maneira, [a avestruz estar com o bico dentro da cabeça da Mulher-Ruiva] interferir no pensamento [da mulher].

Sim, e de não terminar completamente com a capacidade de pensar daquela pessoa.

É engraçado porque se calhar tem alguma coisa a ver com a história do médico psiquiatra interferir com aquilo [no cérebro, através de choques eléctricos ou lobotomias], mudar o pensamento mas não o destruir [ - episódios também deste livro].

Na cena da Avestruz há a particularidade de nos apercebermos que o cérebro pode ser uma coisa ridícula, quando ela tira o bico da cabeça da Mulher-Ruiva e fica com os fios do cérebro pendurados no bico, como se não tivesse maneiras a comer.

O cérebro gera uma série de coisas muito estranhas e sem limite: sobre o que é que podemos pensar? É infinito. Mas ao mesmo tempo, o que está lá dentro é finito. Há aqueles casos das primeiras dissecações: olha-se para um coração e "é só isto?"

Estas imagens surrealistas levam-te onde? Pensas muito nelas? Levam-te a pensar sobre a realidade ou sobre outros livros?

Qualquer situação não quer dizer mais nada do que diz. Não sou nada entusiasta do simbolismo: se há uma avestruz que está a devorar um cérebro, está a devorar um cérebro. Claro que depois podemos pensar sobre isso. Aquela imagem de alguém que está a ser devorado por trás e ao mesmo tempos os olhos estão virados para cima e a ver, os olhos continuam a ver — interessava-me essa questão: a visão continuar. Mas acho que é uma imagem forte de alguém que está a ser atacado no seu centro e de repente olha e vê quase a história da aviação [durante a cena a Mulhe-Ruiva vê lentos balões de ar quente e aviões, alguns com publicidades] e ao mesmo tempo a anunciar o momento em que os loucos vão sendo recuperados. Não vejo uma ligação tão directa com outros livros porque este mundo é muito particular, não é transferível em termos de lógica, é quase como uma disciplina diferente.

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