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José Rodrigues dos Santos. O melhor escritor português?

Com o "O Reino do Meio", completámos a Trilogia do Lótus, e concluímos que já demos oito estrelas a José Rodrigues dos Santos. Uma por cada livro que lemos

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Os 28.000 portugueses que, em 2016, elegeram José Rodrigues dos Santos como “o melhor escritor do país” não podem estar errados. E falta acrescentar que é também o mais prolífico. E que tem um piscar de olho maroto que é mesmo irresistível. 18 romances em 10 anos é obra, sobretudo quando se considera que a escrita não é a principal actividade profissional de José Rodrigues dos Santos (JRS) e que cada volume tem entre 500 e 700 páginas. Apesar de ter sido eleito “Escritor de Confiança” pelos leitores das Selecções do Reader’s Digest, de ser “considerado pelos portugueses o melhor escritor nacional” e de ter chegado “ao primeiro lugar do top de vendas em países como Canadá, França, Suíça, Turquia, Bulgária e Hungria”, JRS tem sido, até agora, ignorado pelos círculos mais elitistas da literatura, nomeadamente pela Academia Sueca.

Porém, aqui na Time Out Lisboa não partilhamos desse snobismo e temos envidado todos os esforços para acompanhar a prodigiosa produção de JRS. Na medida do possível, entenda-se, pois JRS escreve mais depressa do que os nossos críticos são capazes de ler: mal a apreciação a O Reino do Meio terceiro volume da “Trilogia do Lótus”, surgido a 21 de Setembro, tinha sido ultimada, já as livrarias recebiam Sinal de Vida, nono livro da série Tomás de Noronha. Enquanto o nosso esforçado mas lerdo crítico recupera forças (com a ajuda de um massagista, um preparador físico e uma câmara de crioterapia) para se abalançar à leitura das 656 páginas de Sinal de Vida, aqui recapitulamos as apreciações sobre alguns dos romances anteriores.

O Reino do Meio de José Rodrigues dos Santos e outras críticas

O Reino do Meio - Set 2017 (uma estrela)

O Reino do Meio - Set 2017 (uma estrela)

Com O Reino do Meio completa-se a “Trilogia do Lótus”, um monumental fresco histórico de José Rodrigues dos Santos, “um dos pesos-pesados das letras lusófonas”, segundo a revista francesa Historia. Após uma travessia de quase 2100 páginas, José Carlos Fernandes admite que “pesado” é adjectivo que se ajusta bem ao escritor

 

Em A arte do romance, Milan Kundera aponta como missão fundamental do romance a revelação de “uma porção até então desconhecida da existência”. Todavia, a maioria dos romancistas contenta-se, preguiçosamente, em repisar porções da existência já sobejamente tratadas por outros autores, enquanto aspectos não menos importantes continuam a ser sistematicamente excluídos da matéria romanesca. Tome-se, por exemplo, a forma como as pessoas usam os eléctricos para se deslocar, assunto que tem sido imperdoavelmente negligenciado pela Grande Literatura e a que só José Rodrigues dos Santos (JRS) tem dado a devida atenção. Em O pavilhão púrpura, o II tomo da “Trilogia do Lótus”, já tínhamos sido brindados com este trecho brilhante: “A voz do condutor do eléctrico troou no veículo. ‘Praça do Comércio!’ A campainha soou e Artur olhou para o exterior; a viatura chegara ao Terreiro do Paço. Levantou-se e dirigiu-se à porta, pois era naquela paragem que teria de sair”. Em O Reino do Meio, o III tomo da trilogia, JRS volta ao pertinente tema numa passagem ainda mais fulgurante: “Tatiana apercebeu-se de que teria de sair na paragem seguinte e levantou-se apressadamente. ‘Hoje vou ter um dia muito atarefado’, revelou, carregando na campainha para assinalar a intenção de sair nessa paragem [...] O veículo imobilizou-se, a porta abriu-se e os passageiros que saíam naquela paragem saltaram para a rua em catadupa”. Não contente com este precioso contributo, JRS oferece-nos também uma madura reflexão sobre outro meio de transporte que o romance tem descurado: “Os elementos da comitiva entraram no espaço, uma espécie de gaiola, o guia premiu o botão do quinto e último andar e o elevador deu um solavanco e começou a lenta ascensão”. Aguarda-se com febricitante impaciência que em romances futuros JRS nos elucide sobre o modo de operação de trotinetas, autoclismos, moinhos de café e esquentadores.

Alguns leitores ficarão desiludidos com o desenlace da trilogia: acompanharam quatro sagas familiares em paralelo ao longo dos tumultuosos anos entre as duas Guerras Mundiais, para descobrir que os quatro fios narrativos são abruptamente interrompidos in media res, o que espíritos malévolos poderão atribuir ao facto de o autor não ter ideia de como atar e rematar as narrativas que pôs em marcha. Todavia, é preciso perceber que o que os romances de JRS estão para lá dessa convenção pequeno-burguesa que é o “enredo”. A “Trilogia do Lótus” vale, antes de mais, como monumental tratado de filosofia política, que JRS aproveita para reafirmar, por interpostas personagens e em múltiplas ocasiões, que “quem criou o fascismo foram os comunistas”, tese já expressa em O pavilhão púrpura e que então suscitou acesa polémica nos jornais.

O preço a pagar pelo enfoque na “história intelectual dos totalitarismos” é o pouco espaço concedido ao erotismo, área em que JRS não tem par, como pode comprovar-se por este trecho tórrido: “Artur soube nesse instante que estava perdido. Como se fossem atraídos por um poderoso magneto, os dois caíram de repente um sobre o outro e Artur mergulhou nela ciente de que abria uma porta interdita que o levaria não sabia aonde, mas decerto à perdição”. É cena para deixar a bússola emocional do mais fleumático dos leitores a girar descontroladamente...

 

O Pavilhão Púrpura - Mai 2016 (uma estrela)

O Pavilhão Púrpura - Mai 2016 (uma estrela)

Deu-se um ex-primeiro ministro ao incómodo e à despesa de ir estudar ciências políticas para Paris, quando poderia ter adquirido cabedal de conhecimento comparável ficando em casa a ler a trilogia formada por As Flores de Lótus, O Pavilhão Púrpura e o anunciado O Reino do Meio. É certo que estas obras são apresentadas como “romances”, mas a componente ficcional serve apenas para tornar mais sápido um magistral tratado de história das ideologias.

Entre as distinções que José Rodrigues dos Santos (JRS) tem recebido, a mais merecida é a de “Escritor de Confiança”, outorgada pelos leitores das Selecções do Reader’s Digest. Com efeito, JRS é mestre na condensação de matérias e na redução dos mais complexos assuntos a termos simples e claros. Em O pavilhão púrpura continuamos a seguir uma quádrupla saga que se desenrola em paralelo em Portugal, Japão, China e URSS, nas décadas de 1920-30, e em que personagens ficcionais se cruzam com figuras históricas como Chiang Kai-Shek ou Salazar. O enredo é, porém, mero pretexto para colocar as personagens a perorar sobre a génese e natureza do fascismo, do comunismo, do capitalismo e da democracia, com incursões pontuais na culinária japonesa, tai chi chuan, poesia Tang ou eugenia (todas as personagens são versadas nas teorias de Darwin e Spencer). Este digest de JRS substitui com proveito a leitura de Das Kapital, de Mein Kampf e das obras completas de Platão, Hobbes, Rousseau, Tocqueville, J.S. Mill, Lenin e Habermas.

A pedagogia não exclui a sofisticação literária, como pode aquilatar-se por este trecho: “Sentiu-lhe a boca quente e húmida, tão aveludada que lhe sabia a mel, percorrer-lhe o membro já robusto, e por momentos gemeu descontrolado, rendido a um prazer que jamais tinha sequer imaginado”. Noutras vezes, a efusão lírica e o desregramento dos sentidos dão lugar ao realismo seco: “A voz do condutor do eléctrico troou no veículo. ‘Praça do Comércio!’ A campainha soou e Artur olhou para o exterior; a viatura chegara ao Terreiro do Paço. Levantou-se e dirigiu-se à porta, pois era naquela paragem que teria de sair”. Há ainda que enaltecer a piscadela de olho auto-referencial: quem se lembre da sopa de leite de mamas que surge no Codex 643 não deixará de sorrir ao encontrar numa estação do Trans-Siberiano “a babushka do leite, uma matrona larga com seios tão fartos que se diria serem a origem do produto que vendia”.

Seja a descrever um felatio ou a elucidar o processo mental que leva os passageiros a apearem-se na paragem em que pretendem sair, o génio de JRS é inconfundível.

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As Flores de Lótus - Out 2015 (uma estrela)

As Flores de Lótus - Out 2015 (uma estrela)

A expressão marota e a piscadela de olho com que José Rodrigues dos Santos costuma encerrar os telejornais deveriam ter-nos posto de sobreaviso. José Carlos Fernandes, que é um pouco lerdo, só ao 14.º romance, As flores do lótus, compreendeu que sob a fachada do fabricante de bestsellers se oculta um humorista ímpar.

Os truques destinados a criar frisson pedidos emprestados ao folhetim oitocentista;

Os diálogos hirtos e pomposos, dignos do repertório de grupos de teatro amador das primeiras décadas do séc. XX;

As descrições de gentes e paragens exóticas ao estilo de Salgari;

As explicações laboriosas que as personagens fazem umas às outras sobre assuntos que, por terem partilhado as mesmas experiências, deveriam estar fartas de saber;

As tentativas desastradas para fazer humor;

As embaraçosas descrições de cenas de sexo supostamente “tórridas”;

O didactismo que toma conta de tudo, a ponto de a ficção parecer apenas um débil pretexto para encadear prelecções sobre assuntos que vão da física nuclear à exegese bíblica, e que podem estender-se por dezenas de páginas, apenas quebradas pelo arregalar de olhos e pelas perguntas ingénuas da personagem que faz o papel de ouvinte;

Os arroubos de lirismo xaroposo, atabalhoadamente enxertados num registo estritamente funcional e anódino;

A pose-tipo de literato, com a mão afagando o queixo e uma expressão sabedora e condescendente, que o autor assume nas fotos promocionais;

O selo “escritor de confiança” que é aposto ao seus livros, como se de uma alheira se tratasse (para mais, um selo “votado pelos leitores das Selecções do Reader’s Digest”, que, como juízes literários, merecem tanto crédito como os leitores da Mais & Mais Crochet);

Tudo isto somado, parece demasiado ridículo para ser tomado a sério, mas foi o que público e crítica fizeram: arrumaram José Rodrigues dos Santos (JRS) na estante dos escritores de bestsellers, ao lado de Dan Brown e Jeffrey Archer. Todavia, quando se ousa penetrar sob as aparências, JRS emerge como um mestre da sátira, um implacável demolidor das fórmulas estafadas da literatura de aerogare e de hipermercado, um refinado cultor da ironia – qualidade que Kundera defende ser essencial à arte do romance –, enfim, um digno par de Apuleio, Cervantes, Laurence Sterne ou do Eça de O Conde de Abranhos.

O novo romance de JRS, um épico em Cinemascope, onde se entrelaçam a história das primeiras décadas do século XX (em versão caderneta de cromos), quatro sagas familiares (em Portugal, Japão, China e URSS) e um compêndio de filosofia política para totós, revela que, embora JRS cite em epígrafe Matsuo Basho, nada aprendeu dele em termos de concisão. As primeiras cinco páginas, em que Jorge Lobo, o suposto autor do romance, narra o tumulto emocional em que mergulha quando lhe é anunciado pelo médico que lhe restam poucos meses de vida, soa como uma colagem de todos os clichés que a má literatura produziu sobre o assunto durante um século (o fatídico anúncio tanto é comparado a “uma espada sobre a minha cabeça” como, umas linhas abaixo, ganha “a força persistente de um martelo”). Porém, uma análise mais subtil revela que sob a angústia existencial de um Kierkegaard de bazar chinês – “Ali me encontrava eu sozinho diante da eternidade. Ia escorregar enfim para a longa solidão, a grande noite em breve me envolveria no seu abraço gelado e eu voltaria ao nada que fui antes de ser” – está um pândego.

Analogamente, não é exotismo de bilhete postal o que JRS pretende criar quando escreve “Poderia existir alguma coisa comparável com o estonteante túnel lácteo das cerejeiras floridas que se alinhavam junto ao rio Hinokinai e fechavam o céu com ramos entrelaçados de alvura? Como poderia não se sentir esmagado perante o sublime contraste formado pelo branco encadeante das flores de sakura e as muralhas negras e circunspectas das velhas residências tradicionais dos antigos samurais de Kakunodate?”. Se o trecho fosse tomado a sério, como poderia o leitor não se sentir esmagado sob um bloco ciclópico de kitsch? Mas na verdade estamos perante uma sátira, levíssima e ácida, ao registo arrebicado e pseudo-lírico a que tanto romancista sucumbe, no afã de parecer profundo.

Chegado ao fim de 683 vertiginosas páginas, o narrador invoca a doença que o mina para suspender a narrativa e lançar a dúvida sobre se terá forças para a concluir – um artifício de mestre! – e deixa-nos como derradeira frase um teaser – “o mais interessante ainda está para vir”. É inevitável que o leitor fique a aguardar, febricitante, o próximo tomo, O pavilhão púrpura, e até a desejar que mais meia dúzia se siga.

Um subversor das convenções romanescas

Fukui, a personagem principal da saga japonesa, descobre o estranho alfabeto latino aos 16 anos (pg. 552), embora aos 10 já fosse capaz de o ler com desenvoltura (pg. 268). Na pg. 97 descobre-se que a Revolução Francesa (1789) “inspirou de imediato outros países”, como por exemplo os EUA, que “declararam a independência e estabeleceram um regime republicano” (em 1776). Não se trata de inépcia, mas antes de um saudável desdém pelas caducas convenções que amarram a ficção a uma cronologia linear. A pulsão para quebrar os padrões anquilosados do romance está também patente na cena em que Fukui sai de casa para ir à drogaria, a dois quarteirões de distância, calçando “sapatos ocidentais” (pg. 369), mas sai da mercearia de “tamancos” (pg. 375).

Um bolso sem fundo

O capitão Artur Teixeira, personagem central da saga portuguesa, cavaqueia ociosamente sobre política com um colega de quartel e, sentindo necessidade de fundamentar a sua linha argumentativa, tira do bolso um papel: “Olha, tenho aqui o texto da comunicação de Marx ao comité central da Liga Comunista em 1850” (pg. 523). É daquelas coisas que dá sempre jeito ter à mão. E é de crer que se Artur necessitasse do Manifesto comunista, de O capital, do discurso de Zinoviev no Congresso do Partido Social-Democrata Alemão, em 1919, ou das actas do III Congresso da Internacional Comunista, seria também capaz de extraí-los do bolso. O arquivo de Pacheco Pereira na Marmeleira é eclipsado por este bolso prodigioso.

O Homem de Constantinopla - Set 2013 (uma estrela)

O Homem de Constantinopla - Set 2013 (uma estrela)

O Homem de Constantinopla é não só uma biografia romanceada de Calouste Gulbenkian, o magnata arménio do petróleo, como um arrebatador fresco de um mundo em vertiginosa mudança na viragem dos séc. XIX-XX! A vida aventurosa do ambicioso Kaloust Sarkisian (em que não é difícil reconhecer os traços de Gulbenkian) é tão sedutoramente narrada que deixa o leitor a aguardar, febricitante, Um Milionário em Lisboa, o 2º tomo desta empolgante saga! Com que finura é dada a cor local, com os ingleses a pontuarem o discurso com right ho!, old chap, I say, dear fellow e by Jove!, e os franceses com bravo, voilá!, magnifique e oh la la! Que inebriante vórtice de paisagens exóticas, hotéis de luxo, cocktail parties, opíparos banquetes, intriga política e negociatas fabulosas nos círculos da alta finança! Só o erotismo, que este autor costuma retratar em tons vulcânicos, surge inesperadamente contido.

Não se pense que O Homem de Constantinopla se fica pelo folhetim electrizante – Kaloust/Calouste era também um esteta, um coleccionador de arte, uma alma sensível assombrada pela magna questão “O que é a beleza?”. É, pois, apropriado que a narrativa seja entremeada por trechos que espelham a refinada sensibilidade estética do protagonista e do autor: “Banhado pela luz límpida do amanhecer, que rasgava pelo firmamento uma orgia de cores quentes e suaves, o elegante casario de Constantinopla ondulava pela margem europeia do mar de Mármara [...] Parecia que da manhã pingava poesia”. Há, com efeito, alguma coisa viscosa a pingar destas páginas, mas não é poesia. Nem petróleo.

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A Mão do Diabo - Out 2012 (uma estrela)

A Mão do Diabo - Out 2012 (uma estrela)

Quando é que se percebe que um país bateu no fundo? Não é quando o mais alto magistrado da Nação se queixa de que mal ganha para as despesas, é quando o renomado criptanalista Tomás de Noronha, um “fucking génio” cujos serviços são solicitados pela CIA e Interpol e que várias vezes salvou o mundo dos desígnios obnóxios de poderosas seitas, se vê despedido da universidade onde lecciona e acaba na fila do centro de emprego.

Rodrigues dos Santos aproveita a queda na miséria do seu herói para brindar os leitores com quadros de excruciante realismo e com virulentas denúncias de políticos e banqueiros venais, refutando quem o arruma no “escapismo de aerogare”. E se, em ocasiões anteriores, Tomás de Noronha perorara com desenvoltura sobre aquecimento global, fundamentalismo islâmico e exegese bíblica, agora revela-se um híbrido aditivado de Medina Carreira, Vítor Bento e César das Neves. As suas prelecções sobre a crise financeira, recebidas, como sempre, de “olhos arregalados”, tomam o grosso do livro e só esporadicamente são interrompidas por tiroteios, perseguições, decifração de charadas, missas negras e “sinfonias de vagidos ofegantes” (sim, JRS continua a afirmar-se como um dos grandes vates do erotismo). E como o autor faz questão de precisar que quando se prime a campainha de uma porta se ouve “um som eléctrico contínuo no interior do edifício” e que entre terça e quinta-feira vão dois dias, A Mão do Diabo revela-se leitura tão vertiginosa como uma conferência de imprensa de Vítor Gaspar e tão apetecível como o Orçamento de Estado para 2013.

O Último Segredo - Out 2011 (uma estrela)

O Último Segredo - Out 2011 (uma estrela)

O Último Segredo até tem trechos cativantes. Pena é que não tenham saído da cabeça de José Rodrigues dos Santos. José Carlos Fernandes mergulhou neste livro “arrasado” pela Igreja Católica e ficou de olhos arregalados.

Quando um livro promete revelações sensacionais sobre as Escrituras, fica-se à espera de descobrir que Judas se enforcou não por remorso mas porque depositara as 30 moedas no BPN, ou que a sanha de Caifás contra Jesus resultava de o Sumo-Sacerdote ter um bar de strip em Cafarnaum e de as prédicas moralistas de Jesus estarem a prejudicar-lhe o negócio. Porém, as “revelações” de O Último Segredo soarão familiares a quem esteja a par dos debates em torno do Novo Testamento e dos primórdios do Cristianismo. O autor que mais tem contribuído para divulgar esse debate junto do público não-especializado tem sido Bart D. Ehrman (JRS cita-o como fonte) e são as suas teses, pondo em causa a imagem “oficial” de Jesus e da história do cristianismo, que são papagueadas, em versão simplista, pelo criptanalista Tomás Noronha, num show-off de erudição que entope centenas de páginas. Como é hábito nos livros de JRS, tal operação requer, além de um sabe-tudo, um néscio – no caso, a “lindíssima” inspectora Ferro – a quem, perante o caudal de segredos surpreendentes, não resta senão fazer ginástica facial durante páginas a fio (“curvou os lábios”, “esboçou um esgar”, “ergueu a sobrancelha”, “carregou as sobrancelhas”, “arregalou os olhos”).

Por vezes, JRS fica perigosamente perto do texto de Ehrman: na pg.76, diz Tomás Noronha: “Não temos os originais do Novo Testamento nem as respectivas cópias. Na verdade, não temos as cópias das cópias, nem sequer as cópias das cópias das cópias” e na pg.10 de Whose word is it? (edição britânica de Misquoting Jesus), de Ehrman, escreve-se “Não apenas não temos os originais, como não temos as primeiras cópias dos originais. Nem sequer temos cópias das cópias dos originais, ou cópias das cópias das cópias dos originais”.

De resto, a nova aventura do criptanalista Tomás Noronha continua a conjugar enigmas de polichinelo e clichés de filme de acção bera, cimentados com doses generosas de ingenuidade. O contributo “original” de JRS está na premissa que serve de eixo à acção (e para cujo funcionamento são pouco relevantes as centenas de páginas de Crítica Textual do Novo Testamento): uma fundação amante da paz pretende resolver os conflitos do Médio Oriente clonando Jesus mas há gente a quem a paz interessa pouco e tentam travar o projecto por todos os meios, incluindo o “assassinato brutal” (não há forma de os assassinos de JRS ganharem maneiras e delicadeza).

Dando de barato que existiu alguém semelhante ao Jesus descrito no Novo Testamento, que Jesus não ressuscitou, que se localizou o seu túmulo e que é possível recuperar ADN intacto com 2000 anos (!), só pode pasmar-se perante a candura de quem confunde genética com destino. Mesmo que a clonagem tivesse sucesso, o mais provável é que, ao fim de 30 anos, se obtivesse não um Príncipe da Paz mas um contabilista tímido e dispéptico a viver com a mulher, os sogros e uma cadela zarolha num T1 em Tel-Aviv. E se a genética determinasse o destino, uma vez que JRS “revela” o Jesus bíblico como um agitador judeu que defendia a estrita observância da lei judaica e anunciava “não vos trago a paz mas a espada”, nesse caso Jesus 2.0 desabrocharia na idade adulta como judeu ultra-ortodoxo, dos que sonham com o Grande Israel, se necessário à força do aniquilamento nuclear dos vizinhos árabes. O que foi inesperado foi que, mal O Último Segredo chegou às livrarias, foi alvo de um comunicado de invulgar dureza vindo do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (SNPC), habitualmente alheio a assuntos tão pouco etéreos como a literatura de aeroporto, reprovando não a componente ficcional do livro, mas o facto de este não passar de uma versão “requentada” das teses de Ehrman & C.ª e de “arrombar uma porta que há muito está aberta”.

Custa a crer que, acaso fosse publicado por cá um dos livros de Ehrman, o SNPC perdesse tempo a denunciá-lo. Então porque se assanha contra um romance em que uma personagem reproduz as teses de Ehrman? Acontece que Ehrman seria lido por umas centenas de réprobos, não produzindo estragos no rebanho, e um livro de JRS chega a muitas dezenas de milhar de fiéis, a maioria dos quais, paradoxalmente, pouco ou nada conhecem da Bíblia, pelo que ficarão estarrecidos ao “descobrir” que o Novo Testamento não é a palavra literal, infalível e imaculada de Deus mas uma caldeirada de textos de diversas origens e épocas, distorcidos por séculos de erros, contaminações e deturpações. Assim se vêem as diferenças entre religiões: se alguém escreve um livro que belisque o Islão, os mulás prometem o Paraíso a quem degolar o autor blasfemo. Perante ofensa análoga, a Igreja Católica oferece-lhe publicidade gratuita.

Notas adicionais:

1) “Ay, madre mia! Ando a ver demasiados filmes!” é uma das primeiras falas do livro e também uma das últimas da paleógrafa Patricia Escalona – é “brutalmente assassinada” uns instantes depois. A paleógrafa é espanhola e distingue-se dos italianos, que exclamam “Mamma mia!”, e dos irlandeses, que proferem “My God!”. Resta saber em que língua falam eles quando não estão a anunciar ostensivamente a sua nacionalidade. Quem sabe o Espírito Santo desce sobre eles e dá-lhes a capacidade de falar em línguas desconhecidas.

2) JRS, um émulo de Dan Brown? Qual quê? “Melhor que Dan Brown”, proclama uma publicação holandesa citada na contracapa.

3) O trabalho de casa foi feito atabalhoadamente: na pg. 351 JRS refere “autores cristãos do século II, como Martyr”. Martyr? Será que JRS não percebeu que este Martyr é parte do nome inglês Justin Martyr, correspondendo em português a Justino Mártir, também conhecido por Justino de Nablus ou São Justino (103-165 dC) e que “Martyr” é um cognome que não pode ser tomado pelo nome, pela mesma maneira que não pode referir-se por “Breve” o rei franco Pepino o Breve?

4) Na nota final, JRS aponta Hermann Reimarus (1694-1768), como pioneiro da análise histórica do Novo Testamento. Leu apressadamente a bibliografia que diz ter consultado, senão saberia que Reimarus foi precedido nesse domínio por Richard Simon (1638-1712), John Mill (1645-1707), Richard Bentley (1662-1742), Johann Albrecht Bengel (1687-1752) e Johann J. Wettstein (1693-1754).

5) “Plágio” não é o termo adequado para falar da apropriação que JRS faz das teses alheias, mas há ocasiões em que nem se deu ao trabalho de alterar a formulação original. Na pg.76, diz Tomás Noronha: “Não temos os originais do Novo Testamento nem as respectivas cópias. Na verdade, não temos as cópias das cópias, nem sequer as cópias das cópias das cópias”. Na pg.10 de Whose word is it? (edição britânica de Misquoting Jesus), de Ehrman, escreve-se “Not only do we not have the originals, we don’t have the first copies of the originals. We don’t even have copies of the copies of originals, or copies of the copies of the copies of the originals”.

6) Reza a nota do SNPC: “É lamentável que [JRS] escreva centenas de páginas sobre um assunto tão complexo sem fazer ideia do que fala”. Bem, mas JRS não tem feito outra coisa nos seus “romances”: aquecimento global, crise energética, ambiente, genética, história das descobertas, tudo é mal digerido e regurgitado em versão simplória.

7) O padre Anselmo Borges caiu na esparrela de aceitar o convite para apresentar o livro de JRS, aparentemente sem o ter lido, talvez movido por alguma dívida pessoal para com o autor ou a editora ou por não ser capaz de recusar uma oportunidade de exposição pública (ai, as vaidadezinhas...). Depois arrependeu-se da figura que fez (a apresentação de um livro presume cumplicidade e identificação com a obra e o autor, pelo que é difícil apresentar um livro de JRS e não fazer figura de parvo) e apressou-se a negar JRS por três vezes antes do cantar do galo, em artigo no DN. Nesse texto, Borges deixa claro que as teses (de Bart Ehrman) veiculadas por JRS, que desmontam o Jesus “oficial”, não abalam os pilares da sua crença pessoal, pois a fé dele tem alicerces profundos. Mas a verdade indesmentível é que para a esmagadora maioria dos católicos (os que nem sequer abriram a Bíblia) o Cristianismo se resume a essa caderneta de cromos de historietas piedosas (a virgindade de Maria, o paralítico que deita fora as muletas e caminha, o beijo de Judas, as respostas a Pilatos) e se estas não são verdadeiras, a fé fica abalada. Nem a Pastoral viria a terreiro nem a polémica com a Igreja estaria tão acesa se assim não fosse.

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O Anjo Branco - Out 2010 (uma estrela)

O Anjo Branco - Out 2010 (uma estrela)

Num tempo em que tanto se lastima a baixa produtividade nacional, há que ter isto presente: enquanto António Lobo Antunes gasta um dia para compor, com sofrimento excruciante, uma página de escrita retorcida, José Rodrigues dos Santos (JRS), no mesmo período, gera, com alegria e naturalidade, 10 páginas viçosas. Tamanha presteza não implica menor qualidade – comprove-se a inefável poesia desta passagem: “Uma lágrima corria pelo rosto suave da rapariga, grossa, reluzente, como se a saudade a queimasse já com gotas incandescentes de ouro fundido”. JRS revela idêntica mestria quando descreve as facetas menos etéreas da paixão: “[...] puxou-lhe as calças de pijama para baixo e quase desfaleceu quando se deparou com o gigante; o monstro emergia do seu esconderijo com altivez, um colosso de dimensões tais que teve naquele instante a intuição, a promessa, a certeza de que iria finalmente conhecer o paraíso na Terra”. É de homem.

O médico José Branco, protagonista deste oitavo romance de JRS e inspirado no pai do escritor, que terá sido testemunha do massacre de Wiriyamu, é, com efeito, muito homem – foi agraciado com um falo de dimensões exorbitantes, que joga papel crucial em vários episódios, o que inclui acrobacias no exíguo cockpit de uma avioneta em voo (uma première nas letras nacionais).

Nas 670 páginas deste épico, as tropelias do mega-falo entretecem-se com a história de Portugal e das Províncias Ultramarinas, os anos de ouro do Benfica, a ética da profissão médica e as atrocidades da guerra colonial, mas mesmo o leitor mais desmunido de bagagem cultural não deve recear perder-se: como é hábito, JRS condu-lo pela mão e assegura a presença de pelo menos um néscio em cada cena, de forma que outra personagem possa perorar, em tom professoral, sobre a Exposição do Mundo Português ou a história de Moçambique. JRS parece enlevar-se com os seus conseguimentos literários, pois repete, com poucas alterações, um trecho da pg.143 na pg.158. Se alguns escritores menores apenas logram a aprovação dos tops de vendas dos hipermercados, JRS colecciona também os encómios da imprensa cultural – não é qualquer romance que merece um “muito bom” do Público. Face a este reconhecimento, é uma injustiça que Lobo Antunes seja sistematicamente apontado como “o candidato português ao Nobel”. Bastará que JRS escreva outros oito romances e até a Academia Sueca terá de se inclinar perante a evidência: José Branco pode ter “um monstro entre as pernas”, mas JRS tem um Adamastor entre as orelhas.

Fúria Divina - Out 2009 (uma estrela)

Fúria Divina - Out 2009 (uma estrela)

Se era fã de Enid Blyton e agora olha as montras das livrarias em busca de um sucedâneo das suas aventuras e charadas juvenis, tem motivos para alegrar-se: Tomás Noronha, o historiador e criptanalista criado por Rodrigues dos Santos está de volta. Sendo Tomás um génio – um “fucking génio”, como gosta de precisar Bellamy, um big boss da CIA – os problemas que tem de defrontar em cada livro são sempre de altíssimo coturno: desta vez é uma ameaça de atentado nuclear da Al-Qaeda. De resto, segue-se fielmente a receita dos livros anteriores.

Por comparação com as histórias de Blyton, ganha-se em sexo e geopolítica internacional, mas perdem-se os scones e os piqueniques, as personagens são menos elaboradas, a construção menos sólida e o suspense mais forçado. E por cada página de acção há 30 de explicações laboriosas, escolares e inverosímeis (sobre o Islão, sobre física nuclear) disfarçadas de diálogos, em que um dos interlocutores faz de néscio e o outro de compêndio pedante.

Quanto à sofisticação dos diálogos, fiquem com esta amostra. Bellamy: “Se eu fosse um terrorista e quisesse efectuar um atentado nuclear, o que acham que teria de fazer?” Tomás: “Arranjar uma bomba, suponho eu”. O homem é mesmo um fucking génio. A contracapa proclama “Este romance foi revisto por um dos primeiros operacionais da Al-Qaeda”. Mas é provável que muitos preferissem o internamento em Guantánamo a tal tarefa.

Outras leituras

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Dificilmente adivinharia o autor: “O turista, como se sabe, é logo a seguir à galinha (de aviário ou não), o animal menos viável da criação”. Estes textos, publicados em Luanda no ano de 1971, no Notícia – Semanário Ilustrado, devolvem-nos um Herberto Helder (1930-2015) que muito poucos conhecerão (o próprio filho, Daniel Oliveira, que prefacia o livro, nunca os lera), num registo entre a reportagem e a crónica, munido de um humor espantoso e de uma verve crítica que, todavia, não apagam um certo traço poético na sua escrita. 

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Mamas & Badanas. O livro que afinal é só silicone
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Mamas & Badanas está dividido em dois por um profundo rego: de um lado uma centena de páginas sobre os textos nas badanas e contracapas dos livros de autores portugueses; do outro um volume similar de páginas que inventariam ocorrências de seios. Ambos possuem elevado potencial humorístico.

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