Casa dos Bicos
Fotografia: Mariana Valle LimaCasa dos Bicos
Fotografia: Mariana Valle Lima

Memorial do Convento: uma rota literária entre Lisboa, Loures e Mafra

O romance que revolucionou a literatura portuguesa contemporânea renasce agora em forma de rota cultural e histórica.

Raquel Dias da Silva
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Considerado um dos mais importantes romances portugueses do século XX, o Memorial do Convento, de José Saramago, foi publicado pela primeira vez em 1982. Agora, ganha vida através de um roteiro literário, cultural e histórico, que parte da Casa dos Bicos, em Lisboa, e termina no Largo da Igreja de Cheleiros, em Mafra. A iniciativa, que convida a percorrer um total de 58 quilómetros em visitas organizadas ou programas livres, segue o texto da obra para nos revelar monumentos históricos e paisagísticos do século XVIII, mas também pontos de interesse patrimonial, como o miradouro sobre o rio Trancão, outrora um importante porto fluvial, e o Mercado da Malveira, ainda hoje um dos mais emblemáticos da apelidada região saloia. 

A convite da Fundação José Saramago, fizemos-nos à estrada e viajámos no tempo. Não sendo possível completar o percurso em menos de dois dias, seleccionaram-se apenas algumas paragens. O leitor poderá seguir as nossas sugestões ou criar o seu próprio roteiro. Basta aceder ao Mapa Interactivo da Rota Memorial do Convento, marcar os pontos a visitar e percorrer as linhas geográficas do romance.

Entre as 13 paragens recomendadas, destaca-se o Terreiro do Paço, onde se inicia o Memorial do Convento, com a união entre o rei D. João V e a rainha D. Maria Ana Josefa; a Praça Monumental de Santo Antão do Tojal, povoação de onde parte Baltasar conduzindo uma junta de bois com materiais para a construção do convento; e o Palácio Nacional de Mafra, a Real Obra em torno da qual o romance se desenvolve. Tanto estes como os restantes locais estão dotados de pontos de informação, em forma de totem, com indicação visual do percurso, um excerto que faz a ligação do sítio à obra, QR codes para o site da rota e sugestões de outros locais a visitar nas redondezas. Ao longo do ano, está ainda prevista programação cultural associada à rota, desde encontros de leitores e conversas até espectáculos de teatro e música barroca.

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Memorial do Convento: uma rota literária entre Lisboa, Loures e Mafra

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Copiado o modelito ao italiano Palazzo Dei Diamanti de Ferrara, edificou-se no século XVI esta casa, que se destacava e se continua a destacar das restantes pela original fachada sul. Coberta por um amplo xadrez de relevos piramidais, começou por ser conhecida como Casa dos Diamantes, como a ela se refere Saramago, mas depressa foi rebaptizada pelo povo, que em vez de diamantes via bicos. Actualmente, o edifício, que foi construído a mando do seu proprietário original, Brás de Albuquerque, filho do então vice-rei da Índia, Afonso de Albuquerque, é a sede da Fundação José Saramago, que se dedica à vida e à obra do Nobel da Literatura. É também a primeira paragem da Rota Memorial do Convento, a que se segue o Rossio e o Terreiro do Paço, actual Praça do Comércio, onde conhecemos a vida da Corte e uma das histórias mais emblemáticas do livro: a do padre Bartolomeu de Gusmão, que sonha inventar uma máquina voadora que cruzará os céus de Lisboa.

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Atravessando três municípios, a rota constrói-se sobretudo a partir do percurso utilizado no século XVIII para chegar de Lisboa a Mafra, nomeadamente através dos rios e das estradas reais. “Na altura, o rio Trancão era navegável. Portanto, ia-se até Santo Antão do Tojal e daí seguia-se pelas estradas reais, muitas delas alargadas para permitir circulação de carros de bois aparelhados, que pudessem levar os materiais necessários para a construção do Palácio e Convento de Mafra”, conta Paula Casacas, funcionária da Câmara Municipal de Loures, ressalvando que, apesar de Saramago não mencionar explicitamente o Trancão, há referência “a todo o fluxo de embarcações e pessoas”, que passavam por este povoado, composto por dois núcleos urbanos, incluindo Sacavém de Baixo, que em 1759 era um importante porto fluvial com três cais de atracagem, o de Nossa Senhora, o da Barca e o do Peixe. Perto desta zona, merece visita, entre outros locais, o Santuário de Nossa Senhora da Saúde. No interior, as paredes encontram-se revestidas de azulejos policromos de branco e verde, dispostos em losangos; e o altar-mor, em talha dourada de gosto barroco, alberga uma imagem tardo-medieval da padroeira.

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A primeira referência a Santo Antão do Tojal data de 1291, quando o arcebispo D. Fernando de Vasconcelos e Meneses comprou a quinta a Pero Viegas, tendo mandado requalificar a Igreja e construir um palácio com jardins para a sua residência de Verão. Já no século XVIII, por volta de 1730/31, o então proprietário D. Tomás de Almeida fez uma encomenda ao arquitecto italiano António Canevari, que não só a ampliou como construiu uma nova fachada de inspiração barroca. Actualmente, a Igreja Matriz faz parte do conjunto monumental barroco da Praça de Santo Antão do Tojal. Classificada como Monumento de Interesse Público, é composta ainda por um aqueduto, um palácio-fonte e o Palácio dos Arcebispos. “Aqui também estiveram o rei e a corte e não muito longe edificou-se uma barraca, no sentido real da coisa, aquando da cerimónia da bênção dos sinos da Basílica de Mafra, que vieram de barco até aqui, antes de seguirem numa junta de bois”, desvenda Florbela Estevão, também funcionária da Câmara Municipal de Loures. “De acordo com a narrativa de Saramago, Baltasar foi um dos boieiros, que ajudou a transportar os materiais, os sinos, as estátuas italianas, os carros de bois, que partindo do cais foram na direcção de Fanhões, Montachique, Malveira, Alcainça e Mafra.”

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Vulgarmente conhecido como Palácio dos Arcebispos, o Palácio da Mitra foi antiga residência de Verão do 1.º Patriarca de Lisboa, Tomás de Almeida. O edifício, que integra o Conjunto Monumental projectado pelo arquitecto italiano António Canevari, foi local de estadia do rei e da corte aquando das deslocações para Mafra. “O projecto foi financiado pelo ouro do Brasil”, desvenda Florbela, antes de nos conduzir ao interior do palácio, através de um jardim barroco de planta rectangular, composto por várias alamedas – a principal sobressai pelos muretes ornamentados por painéis de azulejos com albarradas. Tirando a alegria de um jogo de futebol entre os miúdos da Casa do Gaiato, aí instalada, o espaço revela-se um idílio campestre, silencioso e soalheiro. Exemplo de arquitectura residencial e religiosa barroca, o interior do palácio sobressai desde logo pela escadaria de aparato com três figuras de convite a azul cobalto e amarelo antimónio, onde é possível vislumbrar também a representação de animais exóticos. Nas várias salas, encontramos mais painéis do século XVIII, grande qualidade pictórica e diversidade temática.

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  • preço 2 de 4

Antes de seguir caminho, recomendamos uma paragem na Manjoeira. Na estrada, sobressai a paisagem típica da região saloia, povoada de casinhas, fábricas, armazéns e stands de automóveis, mas também de hortas e colinas verdejantes. Já dentro do Solar dos Pintor, que não é um solar como sugere o nome, mas uma casa de família com mais de 100 anos, saltam à vista os tectos de madeira maciça, as pipas de vinho, as pinturas, sobretudo as monumentais, e a paz campestre. Restaurante de cozinha regional, os pratos do dia estão anunciados logo à entrada. À mesa, cesto de pão (1€) e azeitonas (1€) para começar. Para prato principal, pede-se polvo à “Pintor” (12€), em dose generosa, para acompanhar com um jarro de vinho (6€). Se sobrar espaço para a sobremesa, é de provar os manjoeireiros (0,60€), que lembram queijadinhas com um travo a limão. O serviço não é propriamente expedito, mas é simpático, para gente sem pressa, que queira comer bem a preços acessíveis.

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  • Mafra/Ericeira

“Dezassete de novembro deste ano da graça de mil setecentos e dezassete, aí se multiplicaram as pompas e as cerimónias no terreiro, logo às sete da manhã, frio de rachar. (…) Chegou el-rei pelas oito horas e meia, já tomado o chocolate matinal. (…) Foi a pedra principal benzida, a seguir a pedra segunda e a urna de jaspe, que todas três iriam ser enterradas nos alicerces.” Assim conta Saramago, no Memorial do Convento, sobre o dia em que foi lançada a primeira pedra. A promessa de D. João V, de construir um convento de franciscanos caso D. Maria Ana de Áustria lhe desse um herdeiro, cumpriu-se num monumento, que não só é convento como também é basílica e palácio, e estava ainda incompleto quando, em 1730, o rei quis a sua consagração. Depois de espreitar a Igreja, a visita começa na enfermaria do convento, passando pelas salas dos camaristas e das damas, e percorre-se a distância de 232 metros do torreão do rei até ao da rainha. “É a distância da intimidade no século XVIII”, brinca Fernanda Santos, do serviço educativo do Palácio, que nos guia pela história de construção do projecto megalómano, a vida na corte, as encomendas do rei e tantas outras curiosidades (algumas mal-cheirosas) que atravessam os corredores até à biblioteca. Trata-se de um dos acervos literários mais importantes do século XVIII. À época, D. João V enviou embaixadores pela Europa fora para recolherem o que de melhor se tinha publicado até então. São cerca de 30 mil volumes, em grego, latim, francês e holandês, mas só em raras visitas é possível transpor o cordão vermelho à entrada e pisar o soalho do salão. “Ainda temos os nossos amigos morcegos, que comem os insectos antes que eles ponham ovos nos livros”, partilha Fernanda. “Uma vez tirei um livro e caiu-me um morcego ao chão, mas sobreviveu à queda.”

Viajar através dos livros

  • Miúdos

Livros nunca são demais e a melhor altura de lhes apanhar o gosto é logo desde pequeninos. Em prosa curta ou verso, sem nunca dispensar a ilustração aprimorada e cheia de bons esconderijos, estas obras prometem fazê-los abrir a boca de espanto.

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