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Filme, Cinema, A Vida Que Mereces (2020)
©Quim VivesA Vida Que Mereces de David Pasto e Àlex Pastor

‘A Vida que Mereces’, o primo espanhol de ‘Parasitas’

Filme dos irmãos David e Àlex Pastor, em cartaz na Netflix, exibe a consistência, o vigor e a qualidade do cinema que é produzido no país vizinho.

Escrito por
Eurico de Barros
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★★★☆☆

Muitos de nós já ouviram esta história, ou conhecem pessoas que a viveram. Um profissional com muitos anos de trabalho na sua área, e grande sucesso, vê-se subitamente despedido, porque apesar da longa experiência e do excelente currículo, deixou-se desactualizar, o seu tempo já passou, tem que dar lugar aos mais novos e dinâmicos, ou simplesmente deixou de ter qualquer utilidade para a empresa.

Foi uma destas coisas que sucedeu a Javier Muñoz, o veterano e respeitável publicitário protagonista de A Vida que Mereces (já disponível na Netflix), a terceira longa-metragem dos irmãos espanhóis David e Àlex Pastor, que no início do filme aparece a candidatar-se a um emprego numa agência, mostrando alguns dos anúncios que o celebrizaram e marcaram uma geração. Mas embora os dois jovens directores que o estão a entrevistar lhe elogiem o trabalho e digam que cresceram a ver aqueles anúncios, não há lugar para Javier ali. É que lhe falta “ousadia”.

O desemprego significa que Javier, a mulher e o filho têm que deixar o magnífico apartamento em que habitam em Barcelona, abdicar do seu estilo de vida desafogado, igual à das famílias prósperas e felizes dos anúncios premiados que ele filmava, e irem morar para o andar modesto que o publicitário ainda mantém numa zona mais popular, mais feia, e muito menos in da cidade. Javier talvez tenha mesmo que ser obrigado a vender o seu BMW topo de gama e resignar-se a usar o utilitário da mulher. E o filho terá que sair do caro colégio privado que frequenta e ir para uma escola pública.

Javier acha que não merece o que lhe sucedeu, que tem todo o direito ao moderno e luxuoso apartamento a que se habituou a chamar a sua casa, que é uma injustiça perder o estatuto económico e social que alcançou. Um dia, quando vem de mais uma humilhante entrevista de emprego, passa pelo antigo prédio e vê que o andar que deixou já está ocupado por uma jovem família: pai, mãe, filha pequena.

É então tomado por uma raiva calada, por um ressentimento sem fundo, por uma autocomiseração perversa. Que o vai levar a insinuar-se, lenta e maquiavelicamente, junto dos novos inquilinos da antiga casa, para conseguir recuperá-la, e à vida confortável e privilegiada que perdeu. Passa-se que Javier, sob o seu aspecto inofensivo, além de moralmente defeituoso, é um sociopata obsessivo, e não vai recuar perante nada, sendo mesmo capaz de deixar a mulher e o filho para trás e recorrer ao crime, para conseguir aquilo a que se propõe. A Vida que Mereces (cujo título original é apenas Hogar) é a história de um náufrago social dobrado de andróide amoral.

Remotamente aparentado com Parasitas, de Bong Joon-ho, embora não tenha a complexidade, a inventividade e a capacidade de surpreender deste, mas se centre também numa casa, A Vida que Mereces é um bom aproveitamento cinematográfico de uma situação que, infelizmente, é cada dia mais comum nas sociedades desenvolvidas modernas. Os irmãos Pastor pegam na sua dimensão de drama social e envolvem-na num embrulho de thriller psicológico (já agora, o subenredo do zelador pedófilo está a mais e dispensava-se), desenrolando-se sob o olhar de uma câmara fria e impassível.

Falta referir a interpretação de Javier Gutiérrez Álvarez, um dos mais activos, trabalhadores e versáteis actores espanhóis, já vencedor de dois prémios Goya, discretamente primoroso no papel de Javier Muñoz, o manipulador implacável com ar de pião das nicas, modos modestos e falinhas mansas. Nada mais perigoso do que menosprezar um homem que está convencido de que tem todo o direito a viver na versão da vida real de um dos anúncios passados em mundos ideais que criou.

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A ideia, inicialmente, era fazer uma lista com os conteúdos portugueses disponíveis na Netflix, mas rapidamente se percebeu que a oferta continua a ser inexistente. E a situação não deve melhorar muito nos próximos tempos, embora não faltem promessas de que a seu tempo as produções portuguesas cheguem ao serviço. Assim sendo, dizemos-lhe antes o que vale a pena ver na língua de Camões, do lado de lá do Atlântico. 

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Era quase impossível encontrar melhor timing para lhe darmos conteúdo deste. Sim, deste que requer pouco mais do que agarrar no comando, sentar-se ou deitar-se, ajeitar as almofadas, escolher o conteúdo e carregar. Fácil ao nível do exercício físico, talvez não tanto ao do psicológico. É que são 22 filmes originais Netflix, o que quer dizer que há muita coisa à qual deitar o olho e, depois de começar, dificilmente vai querer voltar atrás.

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