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Dez versões de “Here’s That Rainy Day”

Eis uma canção feita à medida de dias frios e chuvosos e ruminações melancólicas. O jazz soube reinventá-la sob diversas formas, mas nunca lhe mitigou a tristeza.

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Quem diria que uma canção tão melancólica proveio de um musical com o título Carnival in Flanders? A atmosfera não é de Terça-Feira Gorda mas de Quarta-Feira de Cinzas; o tema é a desilusão e a erosão do amor, algo que parece impossível quando se está apaixonado: “ri-me da ideia de que pudesse acabar assim”. Porém, o amor acabou mesmo por “transformar-se num dia chuvoso e frio”.

A canção, com música de Jimmy Van Heusen e letra de Johnny Burke, foi composta para o dito musical, baseado no filme Kermesse Héroïque (1934), de Jacques Feyder, uma comédia cuja acção decorre na Flandres em 1616. O musical, que enfrentou problemas na fase de produção – o que fez com que o experiente Preston Sturges fosse chamado à pressa para tentar recolocá-lo no rumo –, estreou na Broadway em 1953 e foi um fiasco de bilheteira. Só teve seis exibições, o que não impediu Dolores Gray de ganhar um Tony pela sua prestação. É à sua personagem que cabe cantar “Here's That Rainy Day” e foi esta a única canção do musical a conquistar popularidade – e, ainda assim, foi preciso esperar seis anos para que Frank Sinatra lhe desse um empurrão.

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Dez versões de “Here’s That Rainy Day”

Frank Sinatra

Ano: 1959
Álbum: No One Cares (Capitol)

Sinatra foi o principal responsável pela difusão de “Here's That Rainy Day” junto dos músicos de jazz, ao inclui-la em No One Cares, álbum que o cantor definiu como “uma colecção de canções de suicídio”. Com efeito, a atmosfera predominante é francamente depressiva e os temas da perda e da solidão são recorrentes (No One Cares pode ser visto como uma sequela de Sings for Only the Lonely, do ano anterior). Os arranjos suspirantes de Gordon Jenkins são sofisticados mas nunca abandonam o segundo plano, dando primazia à intensidade dramática da voz de Sinatra que canta a canção – e as restantes do álbum – como se as experiências descritas nas letras fossem as suas (e talvez fossem...).

Peggy Lee

Ano: 1961
Álbum: If You Go (Capitol)

If You Go assenta num conceito não muito diferente do de No One Cares – relações amorosas que acabam mal – mas ao dramatismo de Sinatra, Lee contrapõe suavidade e contenção. Em “Here's That Rainy Day” os arranjos de Quincy Jones combinam a solenidade dos metais com a leveza das flautas, cordas e vibrafone.

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Stan Getz

Ano: 1964
Álbum: Getz/Gilberto #2: Live at Carnegie Hall (Verve)

Na noite de 9 de Outubro de 1964, passaram três formações diferentes pelo palco do Carnegie Hall: o quarteto de Stan Getz, o trio de João Gilberto e um sexteto resultante da adição de João e Astrud Gilberto ao quarteto de Getz. “Here’s That Rainy Day” é tocado pelo quarteto de Getz, com um muito jovem Gary Burton (vibrafone), Gene Cherico (contrabaixo) e Joe Hunt (bateria).

Helen Merrill & Dick Katz

Ano: 1965
Álbum: Deep in a Dream (Milestone), reeditado como The Feeling Is Mutual

Helen Merrill (nascida em 1930 em Nova Iorque, como Jelena Ana Milcetic – os pais eram emigrantes croatas) sempre andou pelo lado menos swingante e efusivo do jazz e esta soberba versão de “Here's That Rainy Day” revela-a na faceta mais despojada e intimista, retardando o tempo até este parecer suspenso – e que bem que isso assenta a esta canção sobre a inevitabilidade da desilusão e da perda. O álbum conta com o piano e os arranjos de Dick Katz e vários jazzmen de primeira água – Thad Jones, Jim Hall, Ron Carter e Pete LaRocca – mas em “Here's That Rainy Day” basta o piano.

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Paul Desmond

Ano: 1965
Álbum: Easy Living (RCA Victor)

Além da sua extensa discografia como membro do Dave Brubeck Quartet, o saxofonista alto Paul Desmond tem uma produção em nome próprio que não deve ser negligenciada, sobretudo no que respeita aos álbuns que gravou com o guitarrista Jim Hall na primeira metade da década de 1960. Disso dá conta este lírico e sereno “Here's That Rainy Day”, que conta com Percy Heath no contrabaixo e Connie Kay na bateria.

Julie London

Ano: 1966
Álbum: For the Night People (Capitol)

Os arranjos de Don Bagley recorrem à guitarra de Barney Kessel, a um contrabaixo e uma bateria muito discretos e a uma secção de cordas e são invulgarmente transparentes – é o acompanhamento perfeito para a voz lânguida e algo narcoléptica de London.

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Bill Evans

Ano: 1968
Álbum: Alone (Verve)

Na abundante discografia de Evans, Alone é, inesperadamente, o único álbum de piano solo, já que em Conversations With Myself (1963) e Further Conversations With Myself (1967), o pianista escolheu dobrar-se (ou triplicar-se) a si mesmo. O programa é constituído por baladas e o clima é introspectivo.

Gene Ammons

Ano: 1969
Álbum: The Boss Is Back! (Prestige)

Muito antes de Bruce Springsteen ser conhecido como “The Boss”, tal epíteto já tinha sido colado ao saxofonista tenor Gene Ammons (1925-1974), que o usou no título de vários dos seus discos. A sua prolífica discografia – quase toda na Prestige – poderia ter sido ainda mais extensa não fosse a morte prematura e os dois longos interregnos resultantes de condenações por  posse de estupefacientes. O regresso aludido no título The Boss Is Back! resulta de este ser o primeiro disco após sete anos na prisão. A pena não parece ter afectado as suas capacidades, a julgar pelo lirismo caloroso e opulento deste “Here's That Rainy Day” que conta com Junior Mance (piano), Buster Williams (contrabaixo) e Frankie Jones (bateria).

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Freddie Hubbard

Ano: 1970
Álbum: Straight Life (CTI)

A viragem das décadas de 60-70 foi um período conturbado para o jazz, com muitos músicos sem saber como reagir à deserção do seu público para o rock – alguns escolheram aderir à electricidade, aos ritmos do rock e do funk e à exuberância da soul music e do gospel, quase sempre com resultados pouco felizes. O trompetista Freddie Hubbard que tinha rubricado uma imaculada série de álbuns para a Blue Note no início da década de 60, foi dos que perdeu o norte: após passar a segunda metade da década a fazer álbuns olvidáveis para a Atlantic, passou a primeira metade da década de 70 a fazer álbuns olvidáveis para a CTI – mas a rematar Straight Life, o seu 18.º disco como líder, há estes cinco serenos e líricos minutos em dueto com o guitarrista George Benson...

Gonzalo Rubalcaba

Ano: 1998
Álbum: Inner Voyage (Blue Note)

O cubano Gonzalo Rubalcaba tem uma técnica pianística assombrosa, que costuma manifestar-se em música incandescente, esfuziante, transbordante de notas e, por vezes, excessivamente enfática e frenética. É pois surpreendente que tenha escolhido abordar “Here’s That Rainy Day” como se tivesse todo o tempo do mundo e quisesse suprimir todos os gestos supérfluos. O resultado revela a sensibilidade requintada de um músico visto como “explosivo” e é uma das mais sublimes versões desta canção. Os seus acompanhantes, Jeff Chambers (contrabaixo) e Ignacio Berroa (bateria), estão em perfeita sintonia com a contenção e despojamento do pianista.

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