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Ricardo Ribeiro
Duarte DragoRicardo Ribeiro

“A música, a poesia e a filosofia sempre me salvaram. Até de mim próprio”

Ricardo Ribeiro apresenta “Respeitosa Mente” no CCB, a 1 de Junho. É um disco mediterrânico, com influências do Alentejo à Síria.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
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Ao longo de cinco discos, Ricardo Ribeiro fez o que se esperaria de um fadista: cantou o fado. O sexto trabalho é muito diferente. Respeitosa Mente, feito com o pianista João Paulo Esteves da Silva e o percussionista Jarrod Cagwin, é uma viagem de difícil catalogação pela extensa cultura do Mediterrâneo. Saiu no final de Abril, mas só agora subirá ao palco do Centro Cultural de Belém. Não o preocupa que as ciosas gentes do fado gostem ou não desta deriva. O que o deixa “nervoso” é que vai tocar guitarra ao vivo.

As escovas e o piano que se ouvem a abrir o disco, em “Depois de Ti”, estão lá para abrir caminho por entre quem vai a contar com um disco de fado?
Sim. O disco nasce de uma necessidade interior de cantar outra música e outra poesia. Seguia o João Paulo [Esteves da Silva] como músico, compositor e poeta, e quando nos conhecemos pessoalmente em 2016 (ele participou no Hoje é Assim, Amanhã Não Sei), sentimos um desejo muito particular de fazer algo muito nosso. A percussão veio depois: quando preciso da nobreza e da delicadeza do ritmo é Jarrod [Cagwin] com quem conto.

Há poucos anos, dizia que não fazia planos para não estragar os planos que a vida poderia ter para si, citando Agostinho da Silva. Dizia-o a propósito de Hoje é Assim, Amanhã Não Sei, um título premonitório.
A arte é a exaltação da liberdade total. As artes não têm regras. Gosto muito de etimologia e vou sempre à procura da natureza essencial das palavras. Regra significa fechar, bloquear a determinado ponto. Então, costumo dizer que as artes têm características. Isto para responder que tenho uma vida muito livre. Tive a sorte de ter uma editora – e agente e manager – que não me pressiona para fazer o que está na moda.


É importante definir um género para Respeitosa Mente?
É música e poesia. Cada um colocará na prateleira que quiser. Quando ouvires, dirás que isto é jazz, ele que lhe soa a folclore, a fado, a música do Mediterrâneo, ou árabe... Talvez daqui a um tempo se perceba que é um linguajar meu – e evidentemente dos músicos.

Já o tinha dito noutra ocasião: que estava a construir algo que só iríamos compreender mais lá para a frente.
Talvez. Ou não. Ou não. Pode ser uma prepotência minha.

Mas há planos para seguir este caminho?
Tenho cinco discos antes deste que são só fados. Estou sujeito a que as pessoas não entendam bem, ou não aceitem bem e prefiram o fadista ao cantor. Então, não tenho planos para fazer outro disco parecido. Não sei. Se me der na cabeça, faço um disco de flamenco.


Não parece disparatado.
Não. [Risos.]


Interessa-lhe a opinião que as pessoas do fado terão deste disco?
A música é essencialmente uma necessidade minha. Não faço as coisas a contar com os outros. Faço para lhes oferecer. Quando alguém te oferece alguma coisa, aceitas de bom-grado. Depois podes ou não gostar, mas isso é um problema teu. Eu fiz a minha parte. A parte dos outros é gostar ou não. Têm duas hipóteses. Eu só tenho uma: fazer. O ser humano é tão contraditório que os seus julgamentos acabam por não ter muito sentido. 


Um fadista não está obrigado a cantar o fado?
Quando canta fado, é obrigado a cantar o fado. Senão não é um fadista, é outra coisa qualquer. Agora, é evidente que se tenho outras capacidades, se tenho outra necessidade íntima de outra poesia e de outra música, por que não?

O título deste disco, Respeitosa Mente, é extraído de “Envoi"...
O título aparece muito antes de o “Envoi" ter sido composto. O João Paulo compôs seis, cinco dias antes de irmos para estúdio. E o título do disco estava definido há muito tempo.

Bom, então a minha pergunta não faz qualquer sentido. Ia perguntar se seria uma forma de mostrar respeito pelo trabalho do João Paulo Esteves da Silva, e de o homenagear, uma vez que ele compõe oito temas dos 12 temas do disco.
Também é uma maneira de o homenagear. E de ter um compositor só para mim. [Risos.]


O percussionista Jarrod Cagwin, que completa o trio de assinaturas na capa, faz parte da banda do libanês Rabih Abou-Khalil, com quem lançou um disco em 2013. Foi esse trabalho que lhe abriu portas à chamada música do mundo?
Na verdade, faço parte da banda do Rabih há 13 anos. O Jarrod há 20. O Jarrod tem uma capacidade de colorir e perfumar de uma forma muito interessante. No instrumental que dediquei à minha mãe, por exemplo, tem uma parte com ritmo de dez. Não se encontra assim um percussionista que o possa tocar. Tocar com determinada linguagem, com aqueles instrumentos que amo profundamente. Talvez seja por isso que se sente uma cor de música do mundo. Aquilo também sou eu.

Ouve muita música fora do fado e longe do eixo Europa-América?
Oiço mais do eixo do Mediterrâneo. Portugal é um país do Atlântico, mas perfumado e pintado pelo Mediterrâneo. Esta bacia é riquíssima culturalmente.

Os traços ciganos da sua voz em “Deserta Liberdade”, por exemplo, vêm de um lugar muito próximo: a infância. Ou não são bem ciganos?
Gostaria muito de ser cigano. Teria ainda mais liberdade. Tenho uma relação muito próxima com os ciganos, sempre tive. O que teve influência: deu-me ritmo. Mas o meu canto é mais do Norte de África do que um canto cigano, que deriva de toda essa influência. Se ouvires cantores do Norte da Índia, dizes que é um cigano cantando. Ou do Magrebe – Marrocos, Líbia, Síria, Argélia –, vais dizer que é um canto cigano. Não é bem. Sou mais influenciado por essa parte, mas é natural que encontres traços. Isso deixa-me muito honrado. 


A sua vida mudou bastante desde a infância: a família, a morada, a muito falada redução drástica de peso. Permaneceu a dedicação à música.
A vida foi-me sempre empurrando para a música. Foi sempre a tábua de salvação, o refúgio, o caminho da ausência. O caminho da ausência de mim, dessa coisa terrível que é o ego, e o caminho da ausência do mundo. A música, a poesia e a filosofia sempre me salvaram, até de mim próprio.

A arte tem um carácter salvífico?
Sim. O entretenimento é para esquecer a vida, a arte é para a lembrar. Sentes uma coisa extraordinária quando olhas para uma peça de arte. És obrigado a pensar em ti, não no sentido egocêntrico, mas no conceito de existência, do mundo, de ti mesmo e do outro.

Nasceu e cresceu em Lisboa. A cidade também tem mudado muito. O que lhe parece a evolução que está a sofrer?
Há coisas que a mim me desagradam como lisboeta, mas isso é uma questão de egoísmo. Aborrece-me quando entro num bairro típico e ouço mais falar inglês, francês e alemão do que propriamente português. E é isso que seduz um turista quando vem. Os hotéis de cinco estrelas são iguais em toda a parte. O que importa é a maneira como cada povo vive, a maneira como cada povo se expressa. Mas não sou nada contra o avanço. Há coisas que agradam, outras que desagradam, mas isso faz parte. O mundo é dual.

A versão de “As Mondadeiras” é menos o embalo que o cante originalmente lhe dá e mais uma reza. Cumprindo o que diz a letra: “As Mondadeiras (...)/ Não cantam estão rezando”. Foi essa a intenção?
Muito honestamente, fechei os olhos e cantei. Não gosto de arranjar subterfúgios. Cantar é um acto natural, como respirar. Primeiro li o poema e entranhou-se-me na pele, no sangue, e depois cantei.

Há uma ligação entre o cante alentejano e o fado? 

Claro. Para mim, o fado era rural. Só depois passou a ser urbano. Acredito que o fado é muito mais antigo do que aquilo que se pensa. Após o terramoto de 1755, veio uma grande diáspora das províncias, quer do Sul quer do Norte, para Lisboa. Costumo dizer que o avô do fado era um alentejano e a avó uma minhota. Os modos maiores dão-te o Norte: o modo do vinho, da alegria, o fado corrido. Os menores, mais dolentes, as cadências melismáticas. No Norte não tens essas variações, esses apoios de garganta. Perfeitamente mediterrânico.


“As Mondadeiras” e o “Canto Franciscano”, escrito por Ary dos Santos e que conhecíamos na voz de José Manuel de Castro, são os únicos temas do disco que não são originais.
O “Canto Franciscano” é uma provocação. Este não é um disco de fados, mas usei [nesse tema] a base do Fado Menor. Sabes porquê? Por esta discussão sobre o que é fado. Quero ver quem é que se atreve a dizer que isso é fado ou não é – e tem que me explicar porquê. 


E não vamos saber tão cedo a sua opinião sobre se é ou não um fado.
Meu amigo, tu que ouves, é para ti um fado?

Prefiro não arriscar. 

Esta discussão cansa-me profundamente. É fado, não é fado, é novo fado, é velho fado. Vamos embora. Vamos dizer agora porquê que é fado e porquê que não é.

É interessante essa discussão?

É! É porque é um idioma! O fado é um idioma. Os idiomas aceitam neologismos mas nem todos! O fado tem uma linguagem, características que o definem como fado, senão é uma música como há na América, no Brasil, na França, em qualquer parte. Ou só o que define fado é porque tem guitarra portuguesa ou porque estás a cantar em português?

Tem a ver com cantar quadras, quintilhas, sextilhas...
Também tem. Isso é um ponto, mas há mais.

... com os instrumentos, com a estrutura musical?
Não sei, meu querido amigo, avalia por ti.

Não sabe? Desconfio que estou a ser enganado.
Será que são os instrumentos que definem, ou será que é maneira como o cantor define e como os instrumentos acompanham? Estou só a fazer perguntas. É essa a discussão que quero que as pessoas tenham. Eu tenho-a algumas vezes. Desisti foi de dar a opinião a achar que é ou que não é. Mas quero é que as pessoas me digam porquê. Afinal de contas, o quê que é fado – tudo? Ou não é nada?


Esse debate é mais frutífero se usarmos casos específicos – o que a Ana Moura ou a Cristina Branco estão a fazer é fado ou não é – ou tê-lo de um ponto de vista mais geral?
As duas são importantes. Depende é da disponibilidade das pessoas.

Dos próprios artistas?
Dos próprios e do mundo em geral. O mundo quer ver ou não. E atenção que não estou a criticar, nada disso. Se há pessoas que admiro são as duas de que falaste. Aliás, fiz uma canção para a Ana. Oxalá ela a grave. Gostou, se a grava ou não, não sei. Agora, não sou eu que vou definir isso. Quero é que as pessoas conversem. Porque o fado não está estático. Nunca esteve. Ouve as gravações de 1900 e as gravações de 1950. Cinquenta nos depois, o que ele passa, o que ele muda. Mas há características, há temperos que se mantiveram. 


Ainda assim, há toda a liberdade para os fadistas experimentarem outras coisas?
Claro! E façam o favor! Uma revolução hoje pode ser uma tradição amanhã. Repito: pode ser. É óbvio que temos de experimentar. Mal de uma tradição se estiver parada. Mal de uma tradição se não fizer experimentos. Agora, cuidado. É que passa a ser uma coisa banal. Passa a ser uma coisa igual a que outro qualquer tem. E o que é interessante é teres uma coisa que te define. 


O repertório deste disco mistura nomes consagrados da poesia – como Homem de Melo ou Ramos Rosa – com poetas quase subterrâneos – como Nuno Moura ou Miguel Martins. Pretendia alcançar um equilíbrio lírico?
Este disco funciona com duas histórias a viver em paralelo: uma que é vivida na minha imaginação e outra que é vivida no concreto, no real. Cada poema tem a ver com a história da imaginação e outro com a história do real. Tanto o do Miguel Martins como do Nuno Moura tem a ver com a imaginação. O do Nuno Moura é [sobre] o suicídio, a última cena antes do suicídio. A do Miguel Martins, "Vou fumar um cigarro a outra vida", também tem a ver com a morte, mas não é a morte. É quase como uma trip: "Vou fumar um cigarro a outra vida/ A uma país distante que é lá fora/ Vou à varanda ver-me de fugida/ Correr pelo passado que demora". Ou seja, ele deixa de existir naquele plano, naquela dimensão
.

A presença de Giacomo Leopardi [1798-1837], em italiano, é, no entanto, a mais inusitada.
Uma das poucas línguas que domino fora do português é o italiano. Já lia muito Giacomo Leopardi e há muito que queria cantar "Alla Luna". Se reparares onde está colocado o "Alla Luna", ele é quase como um fiel da balança. Não divide as histórias porque depois elas estão entrelaçadas, mas é muito claro no sítio onde está. É um poema fabuloso. Há muito que o queria cantar, mas não conseguia sacar-lhe a música. O João Paulo, com a sua genialidade, no espaço de um mês, sacou esta música fabulosa.

Tem apenas dois temas seus no disco, um a abrir e outro a fechar. Porquê?
Aconteceu escolherem o single "Depois de Ti", que é uma música minha com versos do Tiago Torres da Silva, e fazia sentido o final ser um instrumental.  


O que faz do instrumental “NáNá” uma dedicatória à sua mãe?
A minha mãe passou uma fase um bocadinho complicada durante quase dois anos. E toda aquela fase me influenciou e me inspirou a fazer essa música e essa peça. Essa melodia, no fundo, a melodia inspirada na maneira de ela andar, a maneira como entrou em determinado sítio, como ia andando, e depois a maneira como saiu. 


Vai tocar guitarra ao vivo, no CCB?
Vou.

E está confortável com isso?
Não. Não sou guitarrista, sou uma péssima anedota. Mas gosto muito de tocar e aprendi os rudimentos. Mas fico muito nervoso: os dedos prendem, a mão sua, tremo. Mas pelo menos a peça instrumental vou conseguir tocar, mais ou menos bem, sem muitas falhas.

Crítica: Ricardo Ribeiro

"Respeitosa Mente" (Warner Music)

★★★★★

Há uma década, Ricardo Ribeiro tornou-se mais conhecido lá fora do que cá dentro depois de gravar Em Português, do alaudista libanês Rabih Abou-Khalil, disco aclamado que fez mais pelo estudo da influência árabe no nosso genoma cultural do que vários tratados de etnomusicologia. Terá sido aí que se começou a definir o mapa afectivo e musical que parece completo neste notável Respeitosa Mente, uma paisagem de sul onde o fado e o cante se assomam para lá do Mediterrâneo. É um horizonte que se estende de Lisboa a Beirute e se avista por inteiro na moda “As Mondadeiras”, uma de duas excepções a um alinhamento de originais nascidos deste encontro com o percussionista Jarrod Cagwin (americano fascinado pelo Médio Oriente, parceiro antigo de Abou-Khalil) e o pianista João Paulo Esteves da Silva (que assina a maioria das composições). Tudo aqui é exercício exemplar de força e contenção, de exibição virtuosa sem excesso, de igual respeito por cada nota e por cada silêncio, de atenção a cada sílaba dos poemas que Esteves da Silva escreveu e aos outros que Ricardo escolheu a dedo, de Ary dos Santos a Giacomo Leopardi. A composição é inspirada, o entendimento do trio é pleno, a produção é partilhada e a única surpresa para quem tem estado atento será talvez a inesperada habilidade de Ricardo na guitarra e no baixo. É, desde já, um dos discos do ano. João Pedro Oliveira

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