Fernando Tordo
© Manuel MansoFernando Tordo
© Manuel Manso

Fernando Tordo: “Conan Osiris não me interessa absolutamente nada”

Os 50 anos de carreira como compositor servem para falar sobre meio século de canções, vozes e o Festival da Canção.

Hugo Torres
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Se houvesse um bolo de aniversário, veríamos Fernando Tordo a soprar as velas, satisfeito, e a distribuir vénias pelos convidados. É o que o cantor faz no seu novo disco, Duetos – Diz-me Com Quem Cantas, em que celebra os 70 anos de vida e os 50 de compositor, e o que volta a fazer nesta entrevista. Tem elogios a distribuir pelos 17 cantores e músicos que o acompanham – mas não é meigo com a indústria, os media e a geração mais nova.

Cinquenta anos de carreira é uma marca admirável. Dificilmente se consegue resumir num disco – mesmo que se incluam 17 canções.
Cinquenta e quatro. Cinquenta desde que sou compositor. Os outros quatro ficaram nos grupos de rock e pop. Algumas destas canções são muito conhecidas, outras são canções de que eu gosto e que ficaram [perdidas] dentro de discos. No tempo do vinil, a malta da rádio punha a primeira e, se gostava, nunca mais punha outra. Estoiravam-se 11 ou 12 canções. Fui buscar alguns desses estoiros. Mas importante para mim era celebrar o 70.º aniversário e convidar gente de quem gosto muito e gente que nem sequer conhecia.

Quem é que não conhecia?
Conheci o Héber Marques no estúdio [“Adeus Tristeza”]. E ainda não conheço a Capicua. Faz a "Tourada". Pensei que seria giro pôr alguém a dizer isto. Oriento-me muito com o Francisco Maria [o filho mais novo], que me falou dela. Ela estava muito grávida, mas felizmente estava a gravar no Porto. Mandei o instrumental e ela gravou o que eu queria.

Ouvindo esta versão, parece que a “Tourada” foi sempre assim.
Fico satisfeito com esse comentário porque isso é que era difícil. Pondo um cantor, podia não ficar com a mesma impressão. Ela foi de uma generosidade total.

É uma das convidadas mais jovens.
Da Capicua ao Jorge Palma vão 53 anos. Conheço o Jorge Palma há 53 anos. Tenho com ele o "Cavalo à Solta". Ultimamente, quem me surpreendeu como grande cantor foi o Ricardo Ribeiro. Era indispensável convidá-lo [“Se Digo Meu Amor”]. Quem gostaria que cantasse a “N.º 2 – 6.º Andar Frente”, que é uma história de amor verdadeira, é justamente a Rita Redshoes. “Estrela da Tarde”, feita por mim e pelo Ary dos Santos para o Carlos do Carmo, gostava de ouvir numa voz feminina – daí a Carminho. A canção que se tornou a mais célebre da Beatriz da Conceição, “Meu Corpo”, é cantada por uma fadista da mesma escola: a Raquel Tavares. Há uma cantiga de festa, “Como Se Faz Uma Canção”, com Os Quatro e Meio, que são como que um tentáculo das tunas académicas. Neste disco, faço um papel completamente secundário. Às vezes, canto.

O que passa nas canções é que funciona como mestre-de-cerimónias, que vai chamando os cantores para entrar em cena.
[risos] É cerimónia em relação à qualidade de quem está comigo. Não estou a competir nem a cantar à desgarrada. O convidado é que tem de ser beneficiado. “O Meu Corpo” está na tonalidade ideal para a Raquel Tavares. Por isso é que ela faz aquela interpretação. Eu estou quase no recitativo atrás. O tom é impossível para mim.

"O Rato Roeu a Rolha" serve na perfeição a voz, e o estilo, da Maria João. Quem nunca a tiver ouvido também pode pensar estar na presença de um original.
A Maria João era a única cantora que conheço que poderia divertir-se com isto. É preciso ter sentido de humor. Era uma das canções sobre as quais tinha grande expectativa. Como é que ela ia resolver aquilo. Resolveu de tal maneira que até dou meia gargalhada a meio da canção. Deixei ficar por causa dessa espontaneidade.

Que se encontra noutros momentos do disco: quando incentiva o Camané, no “Nasceu Assim, Cresceu Assim”...
Dá-lhe, Camané!

… ou o agradecimento a Jorge Palma no final de “Cavalo à Solta”. É uma forma de seduzir quem o ouve?
Exacto. Alguns têm agradecimento: o Herman, o Rui Veloso... Há anos que o Rui Veloso canta aquela canção comigo. Quando o convidei para o concerto do Coliseu, em 2008, falou-me logo no "Só Ficou Amor Por Ti". Para participar, ele só põe uma condição: gravar no estúdio dele, que é bestial e tem um jardim lindíssimo. A gente diverte-se.

Sentiu-se mais desafiado a gravar com os artistas mais velhos ou os mais novos?
Cada caso é um caso. Mesmo com o meu próprio filho [Filipe Manzano Tordo, que toca em “Os Cantores da Minha Terra”]. É um pianista clássico. Para ele, aquela cantiga é a mesma coisa que a gente estar aqui a conversar. Não tem nada que saber. Mas ele esteve sempre com uma atenção e uma profundidade que se revela no modo de tocar.

A escolha do alinhamento foi completamente livre? Imagino que exista uma obrigação latente de incluir sempre os temas mais populares.
A gente entende isto como se fosse um concerto. Não posso deixar de cantar a "Tourada", o "Cavalo à Solta", a "Estrela da Tarde", a "Balada Para os Nossos Filhos". Foram as canções que fizeram a minha carreira. Não posso dizer ao público: hoje não me apetece. É proibido. De qualquer maneira, estou a fazer uma remodelação profunda em metade do reportório. Está na hora. Até para ter tempo de vida para poder divertir-me com outras canções. Actuo no Montijo a 24 de Abril e presumo já poder apresentar alguma coisa nova.

Uma mudança de que tipo?
São avanços. Há discos que gravei e que não foram ainda editados. Tenho um em que componho para 12 prémios Nobel da Literatura. Canto em cinco línguas. Não saiu porque estamos neste país. Por detrás desta nossa conversa, está uma máquina muito suja.

Poucos músicos conseguiriam reunir num disco um elenco deste calibre, e tão diverso: E no entanto não temos ouvido falar muito deste Duetos. Porquê?
Consigo estes 17 convidados porque sou eu. Tenho esse respeito. Fiz concertos de sala cheia, mas, se não for um ou outro órgão de comunicação social, estas coisas passam ao lado. A única estação que divulga alguma música portuguesa é a Antena 1. São décadas de contacto. Não se consegue fazer mais nada. Com 54 anos de experiência, fui à TSF à hora de almoço, como se tivesse pedido às alminhas que por favor me deixassem ir. No resto da programação, não ouve nem uma vez. O que faz? Desiste? Não! O que está aqui em causa é a chamada playlist, que é paga pelas editoras. As editoras agacham-se. Se não pagassem, aquelas playlists não existiam. Quem é quer ouvir aquela música? Há um saco que está sempre vazio, que adoro preencher com trabalho; e um saco cheio que é o da mentira, que é quando eles tentam dizer à gente que as pessoas gostam de ouvir aquilo.

Há alguma relação entre isso e o que disse, no CCB, que estava lá por quem tinha ido, e não por quem tinha ficado em casa.
Quem tem de se respeitar é quem veio. Quem não está, paciência. As pessoas não são obrigadas a ir. Mas a maior parte perde porque não sabe, não é informado. A malta não se cansa de fazer. Não consigo é ter espectáculos anunciados com ano e meio de distância. São as grandes máquinas que fazem isso. Com dinheiro faz-se tudo.

É uma realidade generalizada, ou é algo que acontece com a sua geração de músicos, que vem sendo negligenciada? Por vezes, parece haver uma certa mágoa.
Tenho a minha vida muito complicada para os próximos dias por causa do excesso de marcações, mas depois acontece isto: não ouço falar. Porque há coisas mais notadas. Consegue ter Lisboa cheia de cartazes de um espectáculo que é daqui a um ano. Mas eu não consegui um mupi na minha cidade. Nasci aqui há 71 anos. Dizem que não há espaço.

Voltemos ao disco. As abordagens soul, jazz, hip hop, fado transformam as canções substancialmente? Ou a força delas está em resistir a outras vozes e estilos?
Desde que o coração da cantiga não seja tocado – a melodia e o texto –, para mim vale. Só quero que as orquestrações, que os arranjos sejam bons. As canções têm uma espécie de um olhar. O que é que se alterou: o penteado, a maquilhagem? O olhar manteve-se.

Disse há pouco que está a trabalhar numa mudança de reportório. Que ambições é que alguém com uma carreira tão longa ainda tem por cumprir na música?
O facto de estar bem de saúde, de a cabeça funcionar, de estar liberto do que poderia ter-me matado pelo caminho, especialmente o álcool, faz-me sentir muito bem para compor. E a poesia. A descoberta permanente. Vou gravar um trabalho profundo sobre uma grande figura literária portuguesa, de que não posso dizer o nome. Estou a estudar e a compor.

Vivo, morto, século XX, mais atrás...
Século XX. São coisas que me interessam muito. A música interessa-me cada vez mais a esse nível. A língua portuguesa e o que se vai desenrolando à volta da língua.

A vaga de músicos que nos últimos anos têm vindo a cantar em português, nas mais diversas formas, estão a tomar conta da língua – musicalmente falando?
[Pausa] Não quero ser desagradável. Falta muita leitura. Se se puser a ler Camilo Pessanha, não é obrigado a musicá-lo – mas talvez convenha ler. Ou Antero de Quental. Há uma estante de cultura no nosso país que talvez convenha percebê-la, pá! A malta nova escreveria melhor se lesse mais. É só isso. Não pensar que se sabe tudo. A gente não sabe nada, pá. A pressão em que vivemos faz com que as coisas não sejam boas. Não há vedetas feitas em três minutos de televisão. Nem em nenhum Festival da Canção.

O Salvador Sobral faz muito isso: lê, ouve, experimenta, canta. Não está a percorrer o caminho de que fala?
Espero que sim. Desde que venceu o festival [em 2017], não ouvi mais nada dele. Estou muito interessado. Não pode imaginar o que seria Portugal ganhar a Eurovisão nos anos 1970. Em mais de meio século, o festival foi uma obsessão. De repente, acontece isto. Independentemente da infelicidade que o Sobral teve em termos de saúde, devia ter sido aproveitado e não foi. É uma gigantesca oportunidade perdida. Como não são daquele tempo, não sabem o valor que tem – e creio que ninguém lhes transmitiu. Era um país traumatizado com a porcaria da Eurovisão! As coisas mudaram muito e, como continuam a mudar, espero que este ano que o nosso representante possa ter uma boa classificação.

O que lhe parece uma proposta tão heterodoxa como a de Conan Osiris?
Não me parece nada. Tenho muito respeito pela música, trabalho-a há décadas. Gosto muito de canções. Preparei-me de outra maneira para esta vida. Sou fã de um gajo que canta aos 90 e tal anos: o Tony Bennett. É incompatível. Não tenho rigorosamente nada contra quem se apresenta daquela maneira, mas não me interessa absolutamente nada.

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