João Cabrita tem vindo a assinar, ao longo de três décadas, trabalhos e colaborações que vão dos Kussondulola a Sérgio Godinho, de The Legendary Tigerman a Cais Sodré Funk Connection. Os Sitiados, Despe e Siga, Dead Combo, todos marcados pelo trabalho do músico e compositor lisboeta. O percurso, contudo, nunca se condensou num disco, num espaço verdadeiramente seu, mas isso está prestes a mudar.
O que leva um músico a pegar num trabalho de esqueleto feito, músculo definido e pele fechada, e deitar tudo fora? Obsessão. Perfeccionismo, talvez. A busca incessante de uma estrutura que lhe sirva de igual modo os ouvidos e o peito. Bernardo Neves fê-lo não uma vez, não duas ou três. Quatro, foi este o número de tentativas até que Philosotry, o disco de estreia do seu alter ego Neev, ficasse pronto. “Passou por muitas mãos e por muitos sítios, à procura da pessoa certa com quem o trabalhar. Porque tinha na cabeça que queria trabalhar com um produtor e tinha a ideia da pessoa certa, portanto nunca parei até a encontrar.”
A ideia de funcionalidade não é de agora. Na escola, em miúdo, nunca segurou uma banda mais do que uns meses porque “levava tudo muito a sério”, a mesma razão que nunca o levou a tocar covers. “Nunca me deu sentido de concretização”, recorda. Ele sabia exactamente o que queria, ainda que não necessariamente o que esperar; a música, fosse ela como fosse, do conforto da guitarra ou da surpresa do piano, foi sempre um objectivo. “Não sei dizer quando é que comecei a querer ser músico, posso é dizer que nunca vi outro caminho” – e foi isso que o levou ao trabalho de Larry Klein, produtor norte-americano, que assinou trabalhos de Joni Mitchell, Tracy Chapman, Herbie Hancock ou Melody Gardot. Foi no quarto, a ouvir um disco desta última, que percebeu a peça em falta para o disco.
“Pensei: 'a pessoa que produziu isto sabe exactamente o que está a fazer'. E quando fui ver, percebi que era o Larry Klein. Aí fui ver o trabalho dele e percebi o que tinha feito. O meu manager mandou-lhe um mail a dizer 'tenho aqui este artista, com estas músicas, e ele gostava muito de trabalhar contigo'. Ele aceitou e passadas umas semanas meti-me num avião e fui ter com ele a Los Angeles.”
As 11 faixas ganhavam assim melodias “ricas e um eclectismo que finalmente lhe deu vida”, diz. Destas, avançaram cinco singles: “Calling Out”, “Lie You Love It”, “This Dream”, “It Is What It Is” e “Something Trivial”, cada um pensado para respirar ao seu tempo, à sua verdade. Porque nunca foi a quantidade na criação a imperar, e ele di-lo muitas vezes. A música de Neev vem de um Bernardo que tem em Bon Iver um dos principais faróis e, à semelhança do grupo liderado por Justin Vernon, o importante é que a música fale mais alto, sempre. “Tudo vem de uma verdade que encontras. Se quero passar verdade pela música, a cena principal é passar uma ideia genuína. E é aí que entra o eu, opiniões, experiências, a forma como absorvo a verdade. Uma coisa que sempre me cativou foi a ideia de a música falar mais alto do que a pessoa que a escreveu.”
E para o conseguir não há regras. Ou talvez haja, um retalho de padrão que ele reconhece, o de que quase tudo o que veste as melodias vem da escrita não musical. É um paradoxo: Neev guarda episódios em cadernos que mais tarde se transformam em letras, sem que estes se transformem em músicas autobiográficas.
“A música vem imortalizar aquela jornada de escrita. Há coisas que nem vão ter à música, mas as que vão partem sempre dos sentimentos escritos”. Não sem antes deixar que tudo faça sentido, e esse, parte sempre de um momento anacrónico. “Houve alguém que me disse que a habilidade de conseguir transportar um sentimento sem palavras é das coisas mais bonitas da música. Portanto quando tens uma parte instrumental que te passa tudo isso, é uma coisa lindíssima. E quando vou compor uma música, se não me sai uma coisa que sinta, fica para outro dia. Mas a letra, por si, vem sempre a seguir a isso e está muito ligada às melodias.”
No final, cabe tudo algures entre a voz e os arranjos melódicos que nos dão uma sensação de grandeza quase cinematográfica. A viagem começou em 2016 à boleia dos noruegueses Seeb e do single “Breathe”, faixa que o deu a conhecer, mas passaram-se quatro anos e a pulsação não abrandou. Então, agora, para onde é que o pode levar? “No dia em que a música parar de ser aquele mistério que não quero resolver, vou ser o primeiro a não a fazer. Ainda é cedo para dizer onde é que ela me levou. Fez-me ver muitos sítios dentro de mim que eu desconhecia. Fez-me olhar para o mundo de forma diferente. É uma pergunta que gostava de responder mas ainda não sei."