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Júlio Resende Fado Jazz Ensemble
Francesco Cerruti/DRO Fado Jazz Ensemble: Alexandre Frazão, Bruno Chaveiro, Júlio Resende e André Rosinha

Júlio Resende: “Caminhar implica ter um pé atrás e outro à frente”

‘Júlio Resende Fado Jazz Ensemble’ é o novo álbum de um pianista que anda há anos em conversas musicais com Amália.

Hugo Torres
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Hugo Torres
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Se fosse uma personagem de banda desenhada, Júlio Resende seria uma espécie de Dr. Manhattan, vivendo simultaneamente em épocas diferentes e servindo como elemento de interligação entre elas. É assim desde que o ouvimos no inicial e promissor Da Alma (2007), mas tornou-se particularmente evidente com Amália por Júlio Resende (2013), Fado & Further (2015) e, em aparente sentido oposto (embora numa toada steampunk), com Cinderella Cyborg (2018). E é assim agora: Júlio Resende Fado Jazz Ensemble, que é lançado nesta sexta-feira com o selo da Sony Music, é uma tapeçaria que usa a música popular como urdidura e entrelaça as suas linhas de pauta em padrões de fado, jazz e blues. Não para nos deixar parados a admirar. É um disco para nos pôr em andamento.

“Gosto de olhar as pessoas e as coisas de um modo renovado, nunca antes visto de preferência, olhá-las com cuidado. Não me esquecer das coisas boas que já ouvimos, e procurar construir coisas boas que ainda não tenhamos ouvido”, diz Júlio Resende, numa troca de correspondência com a Time Out. A afirmação surge a propósito de “Fado Blues”, tema que, dizemos nós, convoca uma memória não identificada. Amália, ainda? Não. “Na verdade, a reminiscência desse tema que deve estar a fazer cócegas no ouvido deriva dos Deolinda”, revela o pianista. “Tentei alvejar no peito o ‘Fado Toninho’, transformando-o numa canção minha. E sim, encontrei uma alma blues nessa abordagem.” Júlio Resende não se contenta com a memória, recupera-a, desmonta-a, transforma-a e, por fim, revive-a.

O espectáculo que há um ano estava a apresentar no palco do Teatro da Trindade, em Lisboa, era isso mesmo: não eram as melodias dos fados de Amália que tocava, num espectáculo de homenagem à fadista, mas a memória que delas tinha. E esse processo não se apaga num álbum de originais como Júlio Resende Fado Jazz Ensemble. Torna-se apenas mais sinuoso, impenetrável e, em última instância, invisível. Resende está em constante viagem na fita do tempo; quem o ouve é que o julga ordeiramente sentado ao piano a debitar mais uns quantos temas para uma rodela de plástico. O movimento é imprescindível. “Tenho o mesmo respeito pelo passado como tenho pelo futuro. Acho que só assim se pode seguir em frente: caminhar implica sempre ter um pé atrás e outro à frente. Ter os dois pés à frente não funciona. Ter os dois pés atrás também não.”

Definir o género deste trabalho é, também por isso, tarefa vã. “Este não é um disco de fado, este não é um disco de jazz. Este é um disco de fado, este é um disco de jazz”, brinca. “Adoro o paradoxo, como Agostinho da Silva. Não é o fado, enquanto metade, nem o jazz, enquanto metade, que me atrai neste disco, é o paradoxo ‘que contém a vida no seu total’.” Mais vale definir o movimento: “Este é um disco de banda, com a energia disso. Só o balanço da bateria do Alexandre Frazão já põe o salão em polvorosa.” Parêntesis: “Pólvora é uma boa qualidade para a arte. Quer seja do artista para o público, quer seja do público para o artista. Porque o artista também deve aprender a ser atingido.” Fecha parêntesis. Além de Frazão, a banda, o ensemble, conta com André Rosinha e Bruno Chaveiro.

Qual foi o papel destes músicos no rumo do disco? “Foi crucial”, garante Júlio Resende. “A guitarra portuguesa do Bruno veio ‘cantar’ comigo as melodias e os solos, e misturar dois instrumentos com cores muito diferentes. O groove e o bom gosto do Frazão veio trazer um trampolim para os nossos pés, como se já tocássemos aos saltos. E o Rosinha está lá para mostrar que a terra ainda assim é o lugar mais bonito onde se estar, junto dos que amamos. O contrabaixo é a ligação à terra na música. É lá que se plantam as sementes”, enquadra. “O que é minha responsabilidade e o que faço enquanto líder é criar, inventar os alvos, apontar o horizonte e depois dizer ‘Vamos, malta!’. E não é que eles me levaram…”

Gosto de olhar as pessoas e as coisas de um modo renovado. Não me esquecer das coisas boas que já ouvimos, e procurar construir coisas boas que ainda não tenhamos ouvido.

Tal com em Amália por Júlio Resende, este disco termina com voz, em “Profecia”, após uma sequência ininterrupta de instrumentais. É uma forma de reconfortar quem o ouve, para que fechem a experiência sendo devolvidos a um lugar conhecido, habitado? Até termos perguntado, não era. Agora, passou a ser: “Bonita forma de o ver. Não era necessariamente a minha, mas se não se importa gostaria muito de guardar esta. Bonita!”. “‘Profecia’ é a minha primeira canção em que fiz a letra e a música, e decidi acabar o disco com esse gesto. E porque adoro o instrumento que se chama voz. O mais belo de todos”, afirma o pianista. A voz, no caso, é de Lina Rodrigues, “uma das melhores fadistas que temos no mundo”, que tem a vantagem de fechar o círculo – Amália por Júlio Resende encerrava com “O Medo”, o mesmo tema com que abre o último disco de Lina, com Raül Refree.

O que não significa o fim. Júlio Resende Fado Jazz Ensemble ensaia, de resto, um plano de fuga: “Vira Mais Cinco”, que é o primeiro single e já vai noutra direcção. É uma homenagem a José Afonso. Será uma porta aberta? “Por agora, não. É um vira, um vira em 5/4, um compasso diferente, mais saltitante, e fez-me lembrar o Zeca o nome que lhe dei. Decidi dedicar-lhe essa canção pelo modo como ele virou o jogo, virou a mesa, e nos fez a todos nós, com a canção como arma, mudar o nosso mundo para melhor.” Aguardemos, então, por um mês mais maduro, mais moreno. Ele já existe. Nós é que ainda não chegámos lá.

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