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Miles Davis: Birth of the Cool
DRMiles Davis: Birth of the Cool

‘Miles Davis: Birth of the Cool’ – da história do jazz para a história do cinema

Aplaudimos sonoramente o documentário biográfico de Stanley Nelson sobre Miles Davis, o genial e atormentado monstro sagrado do jazz, que já está disponível na Netflix.

Escrito por
Eurico de Barros
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★★★★★

Quando em 1958 Louis Malle pediu a Miles Davis que compusesse a banda sonora do seu filme policial Fim-de-Semana no Ascensor não fazia a menor ideia do que ia acontecer. Miles apareceu sozinho no estúdio e, com o filme a ser projectado à sua frente, improvisou, do princípio ao fim, toda a música da fita, numa única sessão de gravação. Há imagens deste feito só ao alcance de um génio musical como Miles Davis no apaixonante e exaustivo documentário Miles Davis: Birth of the Cool, de Stanley Nelson, que acabou de se estrear na Netflix. É narrado pelo actor Carl Lumbly, que reproduz a voz áspera de lixa do músico e usa apenas palavras extraídas de entrevistas que ele deu ou da sua autobiografia.

Composto por imagens de arquivo, várias delas inéditas ou muito raras, e por depoimentos de colegas e músicos que tocaram com Miles Davis, de familiares, críticos, musicólogos e historiadores do jazz, amigos de longa data, ex-mulheres como a bailarina Frances Davis e antigas namoradas, Miles Davis: Birth of the Cool consegue, nas suas duas horas de duração, dar uma ideia da excepcionalidade artística, do insondável talento musical e dos riquíssimos impulsos criativos do biografado, da sua obsessão em nunca se repetir e estar sempre a experimentar algo de novo e estética e musicalmente um passo à frente de todos os outros.

Bem como da importância de Miles como figura de referência para os negros americanos em tempos de agitação racial e convulsão social nos EUA, da sua agitada vida pessoal e amorosa, da sua personalidade complexa e dos seus padecimentos, vícios e demónios (neste particular, e apesar de não ser de forma alguma uma hagiografia acrítica, o filme passa um pouco pela rama o facto de o músico ser um agressor contumaz de mulheres – deverá ter sido a moeda de troca para Stanley Nelson ter tido o apoio dos herdeiros de Miles Davis, e obtido acesso sem limites ao seu espólio e arquivo), dos cumes e abismos da sua carreira e de como as mulheres foram importantes para a sua estabilidade, produção musical e renovação de ciclos da existência artística e pessoal.

Além de mostrar Miles Davis como um dos mais espantosos criadores, inventores e inovadores do jazz, cuja linguagem musical nunca parou de explorar e desenvolver, mesmo no período da decadência, depois das experiências de jazz-rock-funk, de fusão, modais e electrónicas, a partir dos anos 80, com maus discos de grande sucesso comercial, concessões ao pop/ rock e concertos em que já não conseguia fazer um solo que fosse, um homem que pensava em música desde o momento em que acordava de manhã até à altura em que se deitava (“A música é a minha maldição”, dizia ele), Stanley Nelson frisa ainda a sua faceta de descobridor e encorajador de talentos, sobretudo no seu período de ouro de invenção e investigação do cool.

O homem que nos anos 40 tocou com Charlie Parker e Dizzy Gillespie, e que formaria uma parceria perfeita com o seu grande amigo e colaborador Gil Evans (que produziu álbuns históricos como Sketches of Spain ou Porgy and Bess) , lançou também nomes como John Coltrane (que depois expulsaria por duas vezes do seu grupo), John McLaughlin, Wayne Shorter, Tony Williams, Herbie Hancock ou Ron Carter. É este grande contrabaixista que, num dos seus depoimentos, conta o que era trabalhar e tocar com ele: “Todas as noites, estávamos num laboratório. E Miles era o químico.” Carter revela como este prescindia dos ensaios e , nos concertos, dizia aos membros do seu quinteto para não se preocuparem, improvisarem e tocarem como se estivessem num ensaio, e que uma nota errada seria corrigida pela certa que viesse a seguir.

Fica aquela frase de Miles Davis, dita em finais dos anos 60, quando o jazz entrou em crise, os músicos tocavam em clubes com meia-dúzia de pessoas na assistência, e o rock começava a ser dono e senhor da cena musical, com grandes concertos ao ar livre e cachets astronómicos para grupos e cantores: “Quando percebi que a maior parte da malta do rock não sabia nada de música, disse para mim que, com os meus conhecimentos, merecia melhor e uma parte daquele bolo.” Merecia, e foi buscá-lo, goste-se ou não dos resultados. Miles Davis: Birth of the Cool junta-se a Chasing Trane, a Thelonious Monk: Straight, No Chaser ou a Let’s Get Lost na lista dos melhores documentários biográficos de jazz já filmados.

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