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Pedro Alves Sousa
© Mariana Valle LimaPedro Alves Sousa

O saxofone de Pedro Alves Sousa fala a verdade, fala para todos nós

No ano que acabou, Pedro Alves Sousa impôs-se como um dos nomes definitivos da música portuguesa de agora. Falámos sobre o passado, o presente e a Futuro Familiar.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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Pedro Alves Sousa está longe de ser um neófito. Anda neste mundo há 36 anos, estreou-se em concerto com 19, lançou o disco de estreia da sua “primeira banda mesmo a sério”, os OTO, em 2008, e ao longo da década passada editou e tocou com vários grupos e pessoas. Ao todo, conta cerca de duas dezenas de títulos na sua discografia pessoal, incluindo um Live at ZDB gravado com um dos grandes decanos do indie rock e da música americana, Thurston Moore (ex-Sonic Youth), e o companheiro de sempre, Gabriel Ferrandini. Quem presta atenção a estas coisas, portanto, já sabe há alguns anos que é um dos músicos que importam e merecem atenção no jazz e na música improvisada portuguesa actual. Mesmo assim, muitos foram apanhados de surpresa por tudo o que fez em 2022. Poucos artistas em Portugal tiveram um ano tão cheio, tão determinante. E tudo indica que em 2023 não vai abrandar a passada. Janeiro arranca com um par de concertos ao lado dos Mão Morta, a 19 na Culturgest e um dia depois no Gnration (Braga), e tem muitos planos na calha.

Poucos artistas em Portugal tiveram um 2022 tão cheio como Pedro Alves Sousa, repita-se. Estreou‑se enquanto líder em Março, com Má Estrela, disco merecedor dos mais rasgados elogios, onde se escuta uma música nova e difícil de classificar que transcende o free jazz, encavalitada em electrónica psicadélica e footwork, com vapores de dub. Podia ter passado o resto do ano quieto, ou apenas a revisitar esses temas na companhia de Bruno Silva, Gabriel Ferrandini, Miguel Abras e Simão Simões, e teria sido um dos protagonistas do 2022 português. Mas não. No Verão, fundou a sua própria editora, a Futuro Familiar, cujos primeiros dois lançamentos, RAHU e KETU, recuperam actuações de 2016 e 2017 na ZDB. No primeiro, além de Sousa, tocam Alex Zhang Hungtai, David Maranha, Gabriel Ferrandini e Júlia Reis; no segundo tocam os mesmos homens, mas sem a baterista de Pega Monstro. Ouvimo-lo ainda em Tricot, gravado com os Mão Morta no âmbito do projecto Esfera de André Tentugal e Henrique Amaro; no álbum Basfe, em trio com Bartolo e Ferrandini; e noutro trio imortalizado em Cloud At Rest, com Rodrigo Pinheiro e outra vez “o Gabriel”.

A relação de amizade entre estes dois músicos, Pedro Sousa e Gabriel Ferrandini, ajudou a nortear e definir o percurso de ambos. Conheceram-se há largos anos, na Linha de Cascais, e cresceram artisticamente juntos e envolvidos nos mesmos projectos, desde bandas estruturadas e encontros musicais ad hoc até à gestão do fugaz Bar Irreal, um dos espaços culturais mais interessantes e especiais que Lisboa viu nascer e morrer nos últimos anos. Seja no Peter Gabriel Duo, na Lisbon Freedom Unit, nos CAVEIRA, em Má Estrela ou em concertos com improvisadores mundialmente famosos, já os ouvimos a tocar de tudo, desde jazz e música improvisada a noise rock e electrónicas. Não é apenas versatilidade, é um reflexo da maneira omnívora como eles e boa parte (a melhor parte) da nossa geração se relaciona com a música. Pedro, por exemplo, cresceu a ouvir rock “por influência do pai e porque era o que dava na rádio”: os Nirvana, os Metallica, os primeiros discos de nu-metal. Mas depois o Soulseek apareceu na sua vida e, ligado à internet, apaixonou-se por Mr. Bungle e Dillinger Escape Plan, descobriu Aphex Twin e Autechre, rendeu-se ao free jazz.

“Como eu ouvia muito Mr. Bungle, uma professora recomendou-me os Naked City. E isso levou-me ao John Zorn, e o Zorn levou-me ao Derek Bailey, e o Bailey ao free jazz”, recorda. “Venetian Snares também samplava jazz nalgumas songs e, por isso, saquei o Free Jazz do Ornette Coleman", continua. “E depois apareceu a Trem Azul. Fui lá um dia, no Natal, para comprar um álbum ao meu pai, conheci o Travassos e começámos a estabelecer contactos. O Gabriel também estava muito interessado em jazz, e trocávamos muitas coisas entre nós, então começámos cada vez mais a querer fazer música improvisada, música experimental”.

Na altura, Pedro tocava guitarra, apesar de o que mais lhe interessava no instrumento ser o processamento de som e os efeitos que lhe metia em cima. “Estava farto da guitarra, farto de arrastar 300 mil cabos e RCAs e mixers e amplificadores, era uma complicação do caraças. E estava a dar-me um bocado seca, para ser sincero”, detalha. “E um dia vi um concerto do John Butcher que arrasou comigo – no CCB, em 2008, com o Günter Müller e o Carlos Zíngaro. Ele não estava a tocar saxofone de uma maneira clássica e fiquei decidido a aprender aquele instrumento.” Pediu um sax emprestado a um amigo que “não tinha muito interesse naquilo”, deram-lhe “uns pointers, mas só o básico”, e começou a praticar sozinho. “Passados uns meses devolvi-lhe o saxofone e comprei o meu”, lembra. “E a partir do momento em que investi dinheiro no saxofone decidi dedicar-me àquilo.” Sem qualquer educação musical formal – cursou Escultura, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa –, começou a desenvolver a própria linguagem e a procurar a sua verdade.

Esse percurso e a maneira como se relaciona com o jazz, ignorando regras que muitas vezes nem sabe que existem ou porquê, garantem que a sua música aliena alguns puristas, mas para compensar comunica com pessoas de fora. É por isso que vai entrar em 2023 a tocar com os Mão Morta. Será o culminar de um processo que começou com “um e-mail ou uma chamada telefónica do [baterista e fundador dos Mão Morta] Miguel Pedro, que faz o Semibreve”, um festival em Braga. “Ele conhecia o meu trabalho, estava muito interessado [em colaborar comigo] e agora havia esta oportunidade por causa do projecto Esfera.” Passados uns meses, sem nunca se ter encontrado com a banda, estava a gravar com eles nos estúdios Arda, no Porto. “Havia bases e um par de letras do Adolfo, mas criámos quase tudo em estúdio”, confessa. “Só agora é que estivemos a trabalhar juntos, na mesma sala.” Os frutos dessas jornadas de trabalho vão ser colhidos a 19 de Janeiro, na Culturgest, e um dia depois no Gnration, em Braga. “Só vamos tocar faixas novas. As três do [Tricot] e mais oito ou nove inéditas. A ideia é gravar os concertos e depois se calhar edita-se isso.”

Editar “isso” não é, contudo, o único plano para os próximos tempos, nem de longe. Muitos dos seus projectos prendem-se com a editora Futuro Familiar. “Tenho algumas ideias. Por exemplo, quero lançar o meu álbum a solo, que é algo que já estou para fazer há muito tempo e está a viver rent free na minha cabeça. Mas não quero só editar coisas minhas. Isso é fixe, até para solidificar a sonoridade da label, mas quero descolar-me um bocado de mim. Tenho duas coisas na calha, que estou para ver se vão para a frente ou não, que são um duo americano e um trio alemão. Gostava muito de lançar esses dois”, revela. “Fora isso tenho uma cassete com o Simão Simões que vai mesmo sair na Futuro Familiar. Eu a tocar só leitor de cassetes e o Simão a tocar laptop. Um concerto que demos ao vivo e gravámos e nunca mais aconteceu. Trabalhámos o som, misturámos, mas com pouca edição. Tem muito a ver com o formato cassete, por isso achámos que devíamos lançar assim. Até para fazer esse statement de a label ter outros formatos. Porque a primeira coisa [Má Estrela], editada em conjunto com a Shhpuma, foi um CD. Depois foram dois vinis. E agora queria lançar essa cassete e mais umas cassetes de loops, um projecto só meu.”

Os planos não se ficam por aqui. Na calha encontra-se também um disco em duo com a flautista Violeta Azevedo, singular improvisadora e compositora, cujos interesses vão da música experimental à pop-rock. E o primeiro disco de Betas, o seu trio com Simão Simões e o poeta e dinamizador de Putas Bêbadas, Miguel Abras, dois dos músicos que o ladeiam em Má Estrela e noutros projectos. “É o nosso crossover Boredoms/Wolf Eyes”, descreve, por mensagem, dias depois de termos estado à conversa na Marquise, junto à Praça das Flores. “Estamos com electrónicas, sax e leitor de cassetes. O Abras também canta. É super agreste, mas meio fora. Acho que é dos projectos mais estranhos que tenho, na realidade.” A pandemia forçou-os a fazer um hiato, porém vão finalmente gravar agora, promete. “Há sempre coisas para fazer, ahah. So much work to do, so little time.”

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