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Gioachino Rossini
Gioachino Rossini 1895 por Carjat

Oito óperas de Rossini que precisa de ouvir

A subida ao palco do São Carlos de “La Gazza Ladra” serve de pretexto para recordar outras óperas de Rossini.

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Gioachino Rossini surpreendeu o mundo ao abandonar a composição no auge da sua fama, em 1829, após a estreia de Guillaume Tell, com 37 anos de idade. Muito se tem especulado sobre as razões desta reforma antecipada, que não tem paralelo na história da música. Há quem aponte como razão problemas de saúde, que todavia, não o impediram de viver mais 39 anos e de desfrutar da vida; há quem sugira que, tendo rubricado várias obras-primas que considerava inultrapassáveis, não pretendia deslustrar o seu prestígio com obras menores; outros aventam que ficou deprimido com a morte da mãe; outros ainda que estava desgostoso com a evolução do mundo da ópera, que se afastava dos seus ideais estéticos.

Talvez Rossini se sentisse apenas esgotado pela composição de 38 óperas em 19 anos, a maior parte delas aviadas num ritmo frenético. Rossini nasceu em Pesaro, a 29 de Fevereiro de 1792, filho de um trompetista e de uma cantora, começou a compor aos 12 anos e estreou a sua primeira ópera, La Cambiale di Matrimonio, aos 18 anos. Em 1824, após 34 óperas para os palcos italianos, foi contratado pela Opéra de Paris, onde compôs (ou adaptou para a língua e usos franceses) mais quatro óperas.

Uma vez que tinha amealhado gordo pecúlio com os seus sucessos, viveu uma “reforma” de ócio e luxo (era um gourmet requintado), interrompida pontualmente para compor algumas peças menores e uma ou outra peça sacra. Morreu em Paris a 13 de Novembro de 1868.

La Gazza Ladra em Lisboa

Oito óperas de Rossini que precisa de ouvir

L’Italiana in Algeri

Ano e local de estreia: 1813, Teatro San Benedetto, Veneza
Libretista: Angelo Anelli

Quando Rossini compôs L’Italiana in Algeri tinha 21 anos, mas já tinha 11 (onze!) óperas no curriculum. Essa experiência terá sido decisiva para gerir o prazo “impossível! que lhe foi dado para a composição: a encomenda do Teatro San Benedetto, resultante do cancelamento de uma ópera de Carlo Coccia programada para Maio, surgiu em meados de Abril. Rossini tomou um libreto de Anelli já tinha sido musicado por Luigi Mosca e musicou-o em 18 dias, “milagre” que só foi possível porque, além de ser capaz de um ritmo de trabalho vertiginoso, Rossini sub-contratou a composição dos recitativos (e uma ária) a um “negro”.

O enredo de Anelli envolve Mustafá, um bey turco que está enfadado das submissas mulheres do seu harém e alimenta a ideia de lhes juntar uma rapariga italiana. Esta materializa-se sob a forma de Isabella, uma italiana que viera em busca do seu amado, que fora aprisionado pelos turcos, e que naufraga na costa argelina. Após uma série de paixões cruzadas, equívocos, disfarces e subterfúgios, Isabella acaba por conseguir escapar a Mustafá, que garante que não mais quererá saber de raparigas italianas. O enredo tem afinidades com O Rapto do Serralho, de Mozart, mas, na verdade, insere-se num modelo de ópera “turca” em voga na viragem dos séculos XVIII/XIX.

[Excerto, com Marylin Horne (Isabella), Allan Monk (Taddeo), Douglas Ahlstedt (Lindoro), Coro & Orquestra da Metropolitan Opera e direcção de James Levine, Metropolitan Opera, Nova Iorque, 1986]

Il Barbiere di Siviglia

Ano e local de estreia: 1816, Teatro Argentina, Roma
Libretista: Cesare Sterbini, segundo Le Barbier de Séville (1755), de Pierre Beaumarchais

O libreto adapta a comédia de Beaumarchais Le Barbier de Séville (1755), cuja continuação, La Folle Journée ou Le Mariage de Figaro, já levara o génio combinado de Mozart e da Ponte a criar Le Nozze di Fígaro (1786).

Mas o que preocupava Rossini quando em 1816 deitou mãos ao libreto de Sterbini é que Giovanni Paisiello (1740-1816) já estreara em 1782 em S. Petersburgo um Barbeiro de Sevilha que obtivera retumbante sucesso, com récitas por toda a Europa (chegou a Lisboa em 1791) e até nos EUA. O velho Paisiello ainda estava vivo – Rossini teve de pedir-lhe autorização para o remake – e o seu Barbiere ainda era imensamente popular, o que tornava a empresa arriscada.

Há quem sustente que Rossini compôs O Barbeiro de Sevilha em apenas nove dias. É mais provável que tenha gasto três semanas, o que ainda assim implica um ritmo infernal, mesmo levando em conta que reciclou muito material de óperas anteriores – como as hoje esquecidas Elisabetta, Aureliano e Sigismondo. A estreia, a 20 de Fevereiro de 1816, foi um fiasco – devido à recepção ruidosamente hostil dos fãs de Paisiello, irritados pela impertinência de Rossini em afrontar o seu ídolo – mas a segunda representação foi bem acolhida – e rapidamente a ópera conquistou a Itália e o mundo, de forma que hoje poucos se lembram da existência do Barbiere de Paisiello.

[“Largo al Factotum”, por Leo Nucci (Figaro), Coro & Orquestra do Teatro Regio di Parma, direcção de Maurizio Barbacini e encenação Beppe De Tomasi, Teatro Regio, Parma]

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Otello

Ano e local de estreia: 1816, teatro del Fondo, Nápoles
Libretista: Francesco Maria Berio di Salsa segundo The Tragedy of Othello, the Moor of Venice (1603), de William Shakespeare

Há boas razões para que o Marquês Francesco Maria Berio di Salsa não tenha a estatura literária de Shakespeare. Porém, o Marquês não se intimidou por medir-se com um gigante e introduziu em Othello uma série de “melhoramentos” que o converteram num pastelão infestado de inépcias. A música com que Rossini revestiu o libreto do Marquês tem belos trechos (a “Canção do Salgueiro”) mas nem sempre tem a gravidade requerida e abunda em exibicionismo vocal, que entrava a narrativa e sabota a tensão. Talvez estas limitações não fossem tão evidentes se, sete décadas depois da estreia deste Otello, Verdi não tivesse interrompido o gozo de uma merecida reforma para compor uma obra-prima sobre a mesma peça de Shakespeare.

[“Assisa a Piè d’un Salice”, por Cecilia Bartoli (Desdemona), Orquestra La Scintilla, direcção de Muhai Tang, encenação de Olivier Simonet, Ópera de Zurique, 2012]

La Cenerentola

Ano e local de estreia: 1817, Teatro Valle, Roma
Libretista: Jacopo Ferretti, a partir do conto Cendrillon (1697), de Charles Perrault, ele mesmo inspirado na tradição popular

Rossini despachou a partitura de La Cenerentola, ossi la Bontà in Trionfo em apenas três semanas e se é certo que ele completou outras óperas em prazo idêntico, nem todas exibem inspiração tão pródiga como esta. Mais admirável é que o libreto tenha sido, de acordo com a lenda, escrito numa só noite – seja ou não verdade, Ferretti partiu com bom avanço, pois socorreu-se de dois libretos já existente: Cendrillon de Étienne (musicada por Isouard em 1810) e o seu derivado Agatina, o la Virtù Premiata, de Fiorini (musicada por Pavesi em 1814). Mas isto são detalhes de bastidores e ao espectador ou ouvinte o que chama a atenção é a velocidade alucinante a que todas as personagens debitam notas e sílabas – é um ritmo que só voltaria a ter rival nas screwball comedies da Hollywood dos anos 30. Em Mille et un Opéras, Piotr Kaminsky observa que só a ária “Sia Qualunque delle Figlie”, cantada por Don Magnifico (o padastro de Cinderela), debita tanto texto como todo um acto de uma ópera de Donizetti.

Quem esteja familiarizado com as versões de Perrault e dos irmãos Grimm ou da Disney encontrará diferenças substanciais, que se revelam melhoramentos em termos da dramaturgia operática. Assim, a componente mágica é substituída pelo preceptor do príncipe (é ele quem fornece a carruagem e o vestido de baile), o sapatinho de cristal é trocado por uma bracelete e é introduzido um delicioso equívoco por o príncipe trocar de roupas e papel com o seu criado de quarto. O final mantém-se, essencialmente, inalterado: Cinderela (ou melhor, Angelina) casa com o príncipe, para ilimitado desgosto e fúria das irmãs e do padastro – mas a bondosa Angelina pede ao príncipe que perdoe os malvados.

A Cinderela de Rossini não tem fadas-madrinha nem abóboras que se transformam em carruagens – a magia está toda na música.

[“Sia Qualunque delle Figlie”, por Alessandro Corbelli (Don Magnifico), Coro & Orquestra da Metropolitan Opera e direcção de Maurizio Benini, encenação de Cesare Lievi, Metropolitan Opera, Nova Iorque, 2009]

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La Gazza Ladra

Ano e local de estreia: 1817, Teatro alla Scalla, Milão
Libretista: Giovanni Gherardini, a partir da peça La Pie Voleuse (1815), de Théodore Baudouin d’Aubigny e Louis-Charles Caigniez

Muitos compositores dar-se-iam por felizes por, em dez anos de labor, terem feito estrear uma ópera como La Cenerentola. Não Rossini, que no mesmo ano de La Cenerentola, fez estrear (por esta ordem) La Gazza Ladra, Armida e Adelaide di Borgogna.

La Gazza Ladra tem no seu centro uma acusação injusta: uma infeliz conjugação de eventos faz com que Ninetta, criada da família Vingradito, seja a principal suspeita do desaparecimento de talheres do faqueiro de prata da casa. Ninetta, que está apaixonada por Giannetto, o filho dos patrões, tem de enfrentar os avanços do Podesta (uma mistura de presidente da câmara e chefe de polícia), que lhe oferece a absolvição e a libertação em troca dos seus favores amorosos. Ninetta recusa e quando está prestes a ser executada a sentença de morte (uma pena desproporcionada para o crime em questão), descobre-se que o autor dos furtos é uma pega (“gazza”, em italiano).

[“Di Piacer Mi Balza il Cor”, por María Bayo (soprano), Concerto Italiano (em instrumentos de época) e direcção de Rinaldo Alessandrini]

La Donna del Lago

Ano e local de estreia: 1819, Teatro San Carlo, Nápoles
Libretista: Andrea Leone Tottola, a partir da versão francesa do poema narrativo The Lady of the Lake (1810), de Walter Scott

Uma ópera do meridional Rossini com kilts e gaitas-de-foles, ambientada nas nevoentas charnecas das Highlands? É menos invulgar do que parece, já que os romances e poemas de ambiência medieval de Walter Scott tiveram papel fulcral na ópera romântica italiana, já que La Donna del Lago deu sinal de partida para uma corrida aos textos de Scott, que resultou em Lucia di Lammermoor (1835), de Donizetti, e mais de duas dezenas de óperas de vários compositores, entretanto caídas no olvido. Já La Donna del Lago, após uma estreia algo fria, conquistou o público de Nápoles e ficou em cartaz no Teatro San Carlo durante 12 anos, obtendo êxitos análogos em Londres e Paris.

O enredo parte do hábito do rei Giacomo V (Jaime V da Escócia) de vaguear pelo seu reino, disfarçado e assumindo o nome de Uberto – num dessas surtidas, encontra Elena, por quem se apaixona, mas cede percebe que ela está ligada aos que conspiram para o derrubar do trono.

[“Tanti Affeti”, por Monserrat Caballé (Elena), Orquestra Lírica da Radio France e direcção de Gianfranco Masini, 1974]

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Il Viaggio a Reims

Ano e local de estreia: 1825, Théâtre Italien, Paris
Libretista: Luigi Balocchi, inspirado remotamente em Corinne, ou L’Italie, de Madame de Staël

Quebrando a tendêcia de a acção dos libretos de ópera tender a situar-se num passado remoto, mitológico ou histórico, Rossini foi pioneiro na “ópera de actualidades”: estreou Il Viaggio a Reims poucos dias depois do evento que está no cerne da sua intriga: a coroação de Carlos X na Catedral de Reims, a 29 de Maio de 1825. A acção decorre num hotel-spa, onde uma constelação de personagens de toda a Europa desespera por chegar a Reims para assistir à cerimónia. Uma série de contratempos vai adiando a partida e, por fim, chega a notícia de que não há cavalos para a viagem – o que causa a consternação geral.

O ténue fio narrativo é mero pretexto para um desfile de árias nos mais diversos estilos, mas que atestam sempre a transbordante invenção de Rossini. A ópera só teve quatro récitas antes de ser retirada de cena, mas como seria um desperdício que aquela música – irremediavelmente “datada” – não voltasse a ser ouvida, Rossini reutilizou-a quase toda em Le Comte Ory (1827). Estas circunstâncias levaram a que Il Viaggio fosse esquecida e a partitura dada como perdida, até que, em 1977, foram descobertos documentos que permitiram iniciar a sua reconstrução. A estreia moderna teve lugar em 1985, no Festival Rossini de Pesaro, sob a direcção de Claudio Abbado e com elenco recheado de estrelas (o que já contecera na estreia de 1825), o que se justifica, pois todos os 14 papéis solistas requerem cantores de alto nível.

[“Gran pezzo concertato a 14 voci”, em que cada uma das 14 personagens dá um ar de sua graça, fazendo uma homenagem ao seu país. Orquestra do Teatro alla Scala, direcção de Ottavio Dantone e encenação de Luca Ronconi, Teatro alla Scala, Milão, 2009]

Le Comte Ory

Ano e local de estreia: 1828, Salle Le Peletier, Paris
Libretista: Eugène Scribe e Charles-Gaspard Delestre-Poirson

Terão havido escritores piores do que Eugène Scribe, mas poucos terão sido tão nefastos, graças a uma produção torrencial – potenciada por uma oficina de escrita dotada de vários “operários especializados” – que atingiu as cinco centenas de obras, entre dramas, comédias, vaudeville e libretos para muitas das óperas estreadas em Paris entre 1820 e 1865. O libreto de Le Comte Ory é um vaudeville picaresco que tem lugar no Castelo de Formoutiers, durante as Cruzadas: os homens da região foram combater para a Terra Santa, e a Condessa Adèle ficou a aguardar o regresso do seu irmão, juntamente com muitas damas, também elas esperando os seus irmãos, maridos e amados. O libidinoso Conde Ory decide aproveitar a situação e disfarça-se, primeiro de eremita e depois de peregrino, a fim de seduzir todo aquele mulherio. Só que, após um sucesso incial, em que leva a Condessa Adèle a render-se à sua lábia, os eventos acabam por não correr como planeara e, no meio da confusão de disfarces e embustes que se vão sucedendo, acaba a beijar o seu próprio pajem, Isolier, julgando tratar-se da Condessa Adèle (por quem Isolier está apaixonado).

A música, metade dela reciclada de Il Viaggio a Reims, disfarça parcialmente estas limitações: inclui virtuosismo gratuito, digno de rouxinóis mecânicos, mas também genuína inspiração, sobretudo nos momentos mais ternos, como seja o trio “À la Faveur de Cette Nuit”.

[“J’Entends d’Ici le Bruit des Armes”, por Juan Diego Flórez (Le Comte Ory), Diana Damrau (Condesa Adèle), Joyce DiDonato (Isolier), Coro & Orquestra da Metropolitan Opera, direcção de Maurizio Benini, encenação de Bartlett Sher, Metropolitan Opera, Nova Iorque, 2011]

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