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Cena V do Acto IV de Hamlet
Cena V do Acto IV de Hamlet (Ofélia perante o Rei e a Rainha), por Benjamin West, 1792

Dez óperas oitocentistas inspiradas em Shakespeare

Os Dias da Música têm este ano como tema William Shakespeare, que inspirou algumas das mais notáveis óperas do século XIX

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Poucos dramaturgos forneceram inspiração aos compositores como Shakespeare – estima-se em cerca de 300 o número de óperas baseadas nas suas peças. Contudo, nem todos os libretistas recorreram directamente à fonte, preferindo trabalhar a partir de adaptações teatrais, às quais impuseram, por sua vez, cortes, enxertos e distorções, pelo que os conhecedores da obra de Shakespeare se aperceberão de algumas discrepâncias.

Nos Dias da Música em Belém, que decorrem de 25 a 28 de Abril no CCB, será possível ouvir excertos substanciais ou árias e aberturas de algumas dessas óperas. 

Recomendado: 24 sugestões para os Dias da Música em Belém

Dez óperas oitocentistas inspiradas em Shakespeare

Otello, ossia Il Moro di Venezia, de Rossini

Estreia: 1816
Libretista: Francesco Maria Berio di Salsi
Peça de Shakespeare: Othelo, the Moor of Venice, mas por portas travessas

Quando se fala em Otello pensa-se automaticamente na ópera de Verdi, porém há outro Otello, composto 71 anos antes por outro nome cimeiro da ópera italiana do século XIX. Mas enquanto Verdi era um profundo conhecedor da obra do dramaturgo inglês, nem Rossini nem o seu libretista conheciam a peça original, tendo trabalhado a partir de uma adaptação francesa por Jean-François Ducis. Isto explica que a raramente ouvida versão de Rossini tenha diferenças relevantes para a ópera de Verdi: a acção desenrola-se não em Chipre mas em Veneza, o papel de Iago é menos maquiavélico e o de Rodrigo mais proeminente.

[Excerto com John Osborn (Otello), Cecilia Bartoli (Desdemona), Javier Camerena (Rodrigo) e a Orchestra La Scintilla, em instrumentos de época, com direcção de Muhai Tang e encenação de Moshe Leiser & Patrice Caurier, na Ópera de Zurique, 2012 (DVD Decca)]

Amleto, de Mercadante

Estreia: 1822, Milão
Libretista: Felice Romani
Peça de Shakespeare: Hamlet

Felice Romani (1788-1865) foi um dos mais prolíficos e prestigiados libretistas do século XIX: foi colaborador regular de Bellini e Donizetti e também providenciou textos para várias óperas Meyerbeer, Pacini, Rossini e Verdi, produzindo um total de 90 libretos. Amleto foi o seu sexto libreto para o compositor Saverio Mercadante (1795-1870), que, no seu tempo, foi tão popular como Rossini e Donizetti e cujas óperas foram ouvidas nos palcos dos grandes centros musicais europeus, mas está hoje muito esquecido – poucas das suas sessenta óperas são levadas à cena ou gravadas.

[Excerto do final]

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Giulietta e Romeo, de Vaccai

Estreia: 1825, Milão
Libretista: Felice Romani
Peça de Shakespeare: o libreto tem fonte comum com Romeo and Juliet

A história de que Shakespeare se apropriou para escrever, algures entre 1591 e 1595, o seu Romeu e Julieta, era italiana e foi a fontes italianas, não à peça do dramaturgo inglês, que o libretista Felice Romani recorreu como base para o seu libreto. A fonte mais directa foi a peça Giulietta e Romeo (1818), de Luigi Scevola, que tinha como base o romance homónimo de 1530 de Luigi da Porto, cuja matriz pode, por sua vez, ser encontrada em Mariotto e Gianozza, uma das 33 narrativas contidas em Il Novelino (1476), de Masuccio Salernitano. Romani nem sequer foi o primeiro libretista a recorrer a estas fontes: o mesmo tinha feito Giuseppe Maria Foppa quando redigiu o libreto da Giuletta e Romeo (1790) musicada por Niccolò Antonio Zingarelli.

Giuletta e Romeo é a ópera mais conhecida (ou melhor, menos desconhecida) das 16 compostas pelo obscuro Nicola Vaccai (1790-1848), que acabou por ser menos influente como compositor do que como professor de canto e autor do tratado Metodo pratico de canto (1832).

[“E Questo il Loco... Ah! Se Tu Dormi”, pela mezzo-soprano Vesselina Kasarova (Romeo)]

I Capuletti e i Montecchi, de Bellini

Estreia: 1830, Veneza
Libretista: Felice Romani
Peça de Shakespeare: o libreto tem fonte comum com Romeo and Juliet

I Capuletti e i Montecchi nasceu de forma algo atabalhoada. A culpa pode ser imputada a Giovanni Pacini, um dos mais populares compositores da época (e um rival de Vincenzo Bellini), a quem Alessandro Lanari, o empresário do Teatro La Fenice, de Veneza, tinha encomendado uma ópera. Pacini, que estava atarefado a compor uma ópera para Turim, só comunicou a sua indisponibilidade poucas semanas antes da data prevista para a estreia. Romani e Bellini foram chamados a colmatar o “buraco” num prazo tão apertado que tiveram de “trapacear”: Romani reciclou o libreto da Giulietta e Romeo de Nicola Vaccai, e Bellini recorreu maciçamente à sua ópera anterior, Zaira, cuja estreia em Parma em 1829 fora um fiasco completo. A precipitação com que I Capuletti e i Montecchi foi composta – às seis semanas de gestação é preciso subtrair o tempo necessário para os ensaios – não afectou a recepção pelo público: a estreia veneziana, a 11 de Março de 1830, foi um sucesso e a ópera espalhou-se pela Europa como fogo em palha seca: chegou a Dresden em 1831, a Madrid em 1832, a Paris e Londres em 1833.

[“Ah Crudel, d’Onor Ragioni”, por Anna Netrebko (Giulietta), Joyce DiDonato (mezzo-soprano) e a Orquestra da Opéra National de Paris, com direcção de Evelino Pidò, Opéra Bastille, Paris, 2008]

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Das Liebesverbot, de Wagner

Estreia: 1836, Magdeburg
Libretista: o compositor
Peça de Shakespeare: Measure For Measure

Mesmo entre os wagnerianos mais devotos, poucos ouviram Das Liebesverbot, oder Die Novize von Palermo (O Amor Proibido ou A Noviça de Palermo), ou sabem sequer da sua existência. Composta em 1835 (aos 22 anos), foi a segunda ópera de Richard Wagner (1813-1883) e foi a sua primeira ópera levada à cena (Die Feen, composta aos 20 anos, só estrearia em 1888), no teatro de ópera de Magdeburg, de que o compositor fora nomeado director com apenas 21 anos. A carreira de Das Liebesverbot foi tragicomicamente curta: a estreia foi um fiasco, em boa parte porque os cantores nem se deram ao trabalho de decorar e ensaiar as suas partes, e a segunda récita foi cancelada minutos antes de começar, por o esposo da prima donna ter entendido que esta andava a traí-lo com o tenor  e ter armado uma zaragata nos bastidores – porém, mesmo que a cortina tivesse subido, o público na sala resumia-se a três pessoas. A ópera só voltou à cena em 1923 em Munique.

[Num teste de olhos vendados, poucos adivinhariam que esta galhofa é obra de Wagner. Excerto com Christopher Maltman (Friedrich), Coro & Orquestra do Teatro Real, direcção de Ivor Bolton e encenação de Kasper Holten, Teatro Real de Madrid, 2016]

Macbeth, de Verdi

Estreia: 1847, Florença (1865, Paris, na versão francesa)
Libretista: Francesco Maria Piave
Peça de Shakespeare: Macbeth

Poucos compositores tiveram uma devoção por Shakespeare comparável à de Verdi e nenhum compositor fez tanto pela obra do dramaturgo inglês como ele. As suas três óperas shakespeareanas – Macbeth (1847), Otello (1887) e Falstaff (1893) – são três obras-primas e resta-nos imaginar o que teria Verdi feito com A Tempestade, Hamlet e Romeo e Julieta (três peças que considerou musicar) e, sobretudo, Rei Lear, cuja adaptação ocupou, intermitentemente, o seu espírito ao longo de anos.

O apreço de Verdi por Shakespeare raiava a veneração: “É um dos meus autores favoritos. Ando com os seus livros na mão desde o início da minha juventude”. Por isso, em 1847, quando fez a primeira incursão na obra do dramaturgo inglês, bombardeou o libretista com advertências, ainda antes de este iniciar o trabalho. Depois levaria Piave ao exaspero, com constantes modificações e exigências, e acabaria por infligir-lhe a humilhação de submeter o texto à revisão por outro libretista, Andrea Maffei, um amigo de Verdi.

Quando os ensaios começaram, o alvo de Verdi passaram a ser os cantores, a quem instruiu minuciosamente de forma a que a ópera resultasse como idealizara. Ao contrário de muitos colegas de ofício, para quem só a música contava, Verdi não descurava a componente dramática, chegando a dizer aos cantores que a sua função era servir o dramaturgo, não o compositor.

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Die Lustigen Weiber von Windsor, de Nicolai

Estreia: 1849, Berlim
Libretista: Salomon Hermann Mosenthal
Peça de Shakespeare: The Merry Wives of Windsor

Otto Nicolai (1812-1849) teve duas coisas em comum com Mozart: uma revelação precoce da inclinação para a música e uma vida curta. Já na produtividade e no génio, ficou muito aquém de Mozart e das cinco óperas que compôs apenas é lembrado pelo singspiel (ópera com diálogos falados entre os números musicais) Die Lustigen Weiber von Windsor (As Alegres Comadres de Windsor).

A sua gestação foi conturbada: Nicolai fora nomeado director da Hofoper de Viena e entre as obrigações inerentes ao cargo estava a composição de pelo menos uma ópera cantada em alemão. Após ler e rejeitar vários libretos, Nicolai anunciou na imprensa um concurso público – apresentou-se uma trintena de candidatos, mas Nicolai concluiu que eram todos imprestáveis. Desesperado, fez traduzir os libretos das óperas italianas que compusera antes, mas o público sentiu-se ludibriado e a indignação que se gerou na imprensa fê-lo voltar-se para outra solução de recurso: uma versão alemã de The Merry Wives of Windsor. Em 1846, lá conseguiu chegar ao final do II acto, mas o administrador da Hofoper recusou-se a levar a ópera à cena. Exasperado, Nicolai demitiu-se do cargo e zarpou para Berlim – só aí, em 1849, a ópera foi terminada e levada à cena.

[Dueto do II Acto entre Herr Fluth (o barítono Dominic Johnson) e Frau Fluth (a soprano Sabrina Laney Warren), com direcção de Mark Ensley e encenação de Brian Ruggaber]

Béatrice et Bénédict, de Berlioz

Estreia: 1862, Baden-Baden
Libretista: o compositor
Peça de Shakespeare: Much Ado About Nothing

A ópera mais obscura de Hector Berlioz (1803-1869) resultou de uma encomenda de Édouard Bénazet, director do teatro de Baden-Baden. Berlioz ocupou-se ele mesmo do libreto, simplificando-o mas também introduzindo episódios de sua lavra, como seja o do dueto “Nuit Plaisible et Sereine” (que se tornou no trecho mais conhecido da ópera).

[“Nuit Plaisible et Sereine”, por Sylvia McNair (Héro) e Catherine Robin (Ursule), com a Orquestra da Ópera de Lyon, dirigida por John Nelson (Erato/Warner)]

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Roméo et Juliette, de Gounod

Estreia: 1867, Paris
Libretista: Jules Barbier & Michel Carré
Peça de Shakespeare: Romeo and Juliet

Após o extraordinário sucesso de Faust (1859), a carreira operática de Charles Gounod (1818-1893) teve altos e baixos. Após um baixo – Mireille (1864) – o compositor considerou e rejeitou vários libretos antes de se fixar no de Barbier & Carré (que já tinham sido os libretistas de Faust). Mas após ter feito avanços substanciais em Abril de 1865, Gounod mergulhou na depressão e só quase um ano depois conseguiu concluir a ópera. O triunfo superou o de Faust – se esta teve 300 récitas entre 1859 e 1868, Roméo et Juliette ultrapassou as 100 récitas logo no ano da estreia.

[“Ah! Lêve-Toi, Soleil”, por Roberto Alagna e a Orquestra do Capitole de Toulouse, com direcção de Michel Plasson (EMI/Warner)]

Hamlet, de Thomas

Estreia: 1868, Paris
Libretista: Jules Barbier & Michel Carré
Peça de Shakespeare: Hamlet

A dupla Barbier & Carré providenciou libretos para muitas das óperas de sucesso estreadas em Paris em meados do século XIX, quase sempre a partir de obras literárias prestigiadas, embora nem sempre em primeira mão. É o caso do libreto de Hamlet musicado por Ambroise Thomas (1811-1896), que tem por ponto de partida a adaptação francesa da peça de Shakespeare levada a cabo em 1848 por Alexandre Dumas (pai) e Paul Meurice. A escolha pode parecer bizarra mas tem justificação: a adaptação de Hamlet por Dumas & Meurice respondia ao fascínio que tomara conta da Paris de meados do século XIX pela figura de Ofélia; e era com esta adaptação, não com o original de Shakespeare, que o público parisiense estava familiarizado.

Thomas, que é hoje lembrado (embora não muito) por Mignon e Hamlet, já tinha feito uma tangente ao universo shakespeareano com um Songe d’une Nuit d’Été (1850) que não tem relação com a peça homónima e é antes uma fantasia em que contracenam Isabel I, Sir John Falstaff e o próprio Shakespeare. Thomas começou a trabalhar em Hamlet em 1859 e em 1863 tinha-a quase terminada, mas a dificuldade em encontrar cantores para os papéis de Hamlet e Ofélia que agradassem ao compositor fez com que a conclusão da ópera fosse sucessivamente adiada.

[“Pâle et Blonde”, por Nathalie Dessay (Ophélie) e Orquestra do Capitole de Toulouse, com direcção de Michel Plasson e encenação de Nicolas Joël, Thêatre du Chatelet, Paris, 2000]

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