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Giancarlo Guerrero
©DRGiancarlo Guerrero

Sete obras sacras latino-americanas para ouvir (e dançar)

A apresentação na Fundação Gulbenkian da Cantata Criolla, do venezuelano Antonio Estévez, serve para recordar quão rico e colorido é o repertório sacro da América Latina

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Em Roma, a Igreja Católica e Apostólica Romana zelava para que se cumprissem escrupulosamente os preceitos estipulados para os ofícios religiosos e para a música que os acompanhava, mas no Novo Mundo dos séculos XVI e XVII cada igreja e catedral fazia como lhe aprazia.

Foi assim que os compositores de música sacra do Novo Mundo – uns nascidos na Ibéria e outros do lado de lá do Atlântico – a par da composição de obras ao estilo polifónico romano, foram desenvolvendo um registo muito próprio, em que a tradição erudita europeia se fundia com as músicas populares americanas e, por vezes, também com as dos escravos africanos. Um dos géneros musicais mais populares nas igrejas da América Central e do Sul foi o villancico, nascido na Península Ibérica e frequentemente de temática natalícia (colocando ênfase nos pastores e na adoração de Jesus). Se na sua origem o villancico já tinha marcas de danças e músicas populares, no Novo Mundo ganhou ainda mais liberdade e deu origem à negrilla (ou negro ou guineo), um género de villancico que punha personagens africanas a falar em crioulo e tinha, por vezes, influências rítmicas africanas. Também surgiram, embora com menor frequência, villancicos cantados em linguagens ameríndias ou num crioulo hispano-índio. Também o instrumentário empregue na execução destas música era “mestiço”, combinando violinos, violas da gamba, sacabuxas, charamelas, baixões (um antepassado do fagote), cravos e órgãos com instrumentos tradicionais ameríndios e africanos.

Esta fusão produziu música de ritmos vivos e irresistíveis, que estava muito longe do decoro e solenidade que a Santa Sé considerava adequados aos ofícios religiosos – mas quem se importava com isso no tempo em que uma carta levava alguns meses para ir de Roma a Puebla?

Lisboa, cidade crioula

Fundação Gulbenkian, quinta-feira 02, 21.00 e sexta-feira 03, 19.00, 15-30€.

Sete obras sacras latino-americanas para ouvir (e dançar)

Tleycantimo Choquiliya, de Gaspar Fernandes

Ano: início do século XVII
País: México

Não se sabe em que local de Portugal nasceu Gaspar Fernandes (1570-1629), mas há rasto dele (ou de alguém com o mesmo nome) como cantor na catedral de Évora, antes de, em 1599, ter sido contratado como organista da catedral de Santiago da Guatemala. Aí ficou até 1606, data em que se tornou mestre de capela na Catedral de Puebla, no México, substituindo o falecido Pedro Bermúdez (que fora seu colega em Santiago da Guatemala).

Em Puebla, Fernandes compôs obras polifónicas no estilo consagrado, mas o grosso da sua produção está nos villancicos alguns dos quais mesclam o espanhol e o nahuatl (a língua dos aztecas), de que é exemplo este “Tleycantimo Choquiliya”.

Arquivo musical da catedral de Oaxaca, no México

[Pela Capella Reial de Catalunya e Hespèrion XXI, com direcção de Jordi Savall, do álbum Villancicos y Danzas Criollas: De la Iberia Antigua al Nuevo Mundo (Alia Vox)]

Missa Ego Flos Campi, de Juan Gutiérrez de Padilla

Ano: Meados do século XVII
País: México

Juan Gutiérrez de Padilla (c.1590-1664) nasceu em Málaga e foi na catedral desta cidade andaluza que começou carreira como menino de coro. Após desempenhar funções de mestre de capela na Colegiata de Jerez de la Frontera e na Catedral de Cádiz, mudou-se para o Novo Mundo, tornando-se, em 1622, assistente de Gaspar Fernandes na catedral de Puebla. Quando este faleceu, em 1629, tomou o seu lugar como mestre de capela e desempenhou-o até ao fim da vida. Sob a sua direcção, o ensemble da Catedral de Puebla tornou-se no mais esplêndido dos domínios ultramarinos espanhóis, contando com 28 cantores e instrumentistas e 14 meninos de coro.

Entre as quatro missas de Padilla que chegaram ao nosso tempo a mais célebre é a Missa Ego Flos Campi, baseada na melodia de um moteto de autor desconhecido.

[Credo, pela Schola Cantorum do México e ensemble Angelicum de Puebla, com direcção de Benjamin Juárez Echenique, do álbum Baroque Mexico vol.2 (Urtext)]

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Missa San Ignacio, de Domenico Zipoli

Ano: c.1717-26
País: Peru

O Novo Mundo não atraiu apenas compositores ibéricos: Domenico Zipoli (1688-1726) nasceu em Prato, em Itália, foi aluno de Alessandro Scarlatti em Nápoles e de Bernardo Pasquini em Roma, e, em 1715, tornou-se organista da Chiesa del Gesù – a igreja-mãe da ordem dos Jesuítas, em Roma. Não se sabe o que terá levado Zipoli a, um ano depois,  abandonar este prestigiado posto e a dirigir-se a Sevilha, onde ingressou na Companhia de Jesus e zarpou, em 1717, para a Província Jesuítica do Paraguai, um vasto território que englobava não só o que é hoje o Paraguai mas também o Uruguai, Argentina, Bolívia e partes do Peru, Chile e Brasil. Zipoli acabou por estabelecer-se em Córdoba (hoje na Argentina) e a música que aí compôs irradiou para Lima, no Peru, e para Chiquitos, Potosí e Sucre, na Bolívia. A sua obra mais famosa é a Missa San Ignacio, dedicada a Iñigo López de Loyola (1491-1556), fundador da Companhia de Jesus.

[Gloria, pelo Coro de Niños Cantores de Córdoba (Argentina) e Ensemble Elyma, com direcção de Gabriel Garrido, do álbum Les Chemins du Baroque 1: Lima-La Plata Missions Jésuites, reeditado como Musiques des Missions et Cathédrales Andines (K617)]

Alégrese la Tierra, de Roque Jacinto de Chavarría

Ano: c. 1718
País: Bolívia

Pouco se sabe da vida e carreira de Roque Jacinto de Chavarría (1688-1719): era de sangue mestiço índio e espanhol e entrou ao serviço da catedral de La Plata (hoje Sucre, na Bolívia) em 1695, como menino de coro. Quando a voz mudou, na puberdade, passou a desempenhar funções de instrumentista (harpa e contrabaixo) e, mais tarde, de compositor, ao mesmo tempo que estudava no seminário, tendo sido ordenado sacerdote.

Da sua produção chegaram aos nossos dias cerca de 50 obras, sobretudo villancicos cantados em castelhano, como este Alégrese la Tierra.

[Por Els Petits Cantors de Catalunya, Coro Vivaldi, Ars Longa (Havana) e Ensemble Elyma, com direcção de Gabriel Garrido, do álbum Fiesta Criolla (K617), que reconstitui as festividades em honra da Virgem de Guadalupe, em Sucre, em 1718]

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Missa Solemnis, de Sigismund Neukomm

Ano: 1817
País: Brasil

O olvido que hoje rodeia o austríaco Sigismund Neukomm (1778-1858) contrasta com o prestígio de que gozou em vida. Nasceu em Salzburgo, foi aluno de Michael Haydn e de Joseph Haydn, esteve ao serviço de notáveis de França (nomeadamente de Talleyrand), compôs um Te Deum em honra de Luis XVIII e um Requiem em memória de Luís XVI, dirigiu o coro do teatro da corte de Salzburgo e o teatro alemão de São Petersburgo. Em 1816 acompanhou o Duque do Luxemburgo, embaixador francês junto da corte portuguesa no Brasil. A corte refugiara-se do lado de lá do Atlântico, à aproximação dos exércitos napoleónicos, e acabara por lá ficar, mesmo depois da derrota definitiva de Bonaparte, em 1815, e também Neukomm acabou por ficar pelo Rio de Janeiro, onde se tornou professor de música dos infantes reais (só regressou à Europa em 1821).

A Missa Solemnis de Neukomm, que tem por título completo “Missa Solemnis pro Die Acclamationis Johannis VI”, destinava-se à cerimónia de aclamação de D. João VI, 6 de Fevereiro de 1818 (D. Maria falecera a 20 de Março de 1816, mas embora D. João tivesse assumido a governação, só dois anos depois a situação foi formalizada com sumptuosos festejos). Acontece que a música que se ouviu na solene ocasião, na Capela Real do Rio de Janeiro, em 1818, foi antes um Te Deum de Marcos Portugal, o compositor oficial da corte. Consta que terá sido o irmão deste que intrigou para que se desse primazia ao compositor da corte.

[Sanctus, pelo Coro de Câmara de Namur e Grande Écurie et La Chambre du Roi, dirigidos por Jean-Claude Malgoire (K617)]

Cantata Criolla, de Antonio Estévez

Ano: 1954
País: Venezuela

Muitos compositores vivem tão embrenhados no mundo da música que raramente se envolvem na vida política. Não foi o caso de Antonio Estévez (1916-1988), que foi militante e dirigente do Partido Comunista da Venezuela e desenvolveu intensa actividade política, o que lhe custou uma temporada na prisão. A convicção comunista não o impediu de, em 1945, rumar aos EUA para prosseguir os estudos musicais, de onde regressou empenhado na criação de obras de pendor “nacionalista”, de que são exemplo a Cantata Criolla (1954) e o poema sinfónico Mediodía en el Llano (1948).

A cantata põe em música o poema Florentino y el Diablo (1940), de Alberto Arvelo Torrealba, texto que se tornou numa peça central na identidade nacional venezuelana. Nele, Florentino, um homem do povo, humilde mas destemido, envolve-se num despique de poesia e música com o Diabo – este está certo de que irá triunfar e ficar com a alma de Florentino, mas, ao fim de uma noite de duelo intenso, acaba por retirar-se, derrotado, ao nascer do sol.

[Excerto, com Idwer Álvares (tenor), Franklin de Lima (barítono) e direcção de Gustavo Dudamel]

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Misa Criolla, de Ariel Ramírez

Ano: 1964
País: Argentina

O primeiro interesse musical de Ariel Ramírez (1921-2010) foi o tango, mas não tardou a embrenhar-se na recolha e estudo das tradições populares das mais remotas zonas rurais. Muito desse trabalho de prospecção das raízes da música sul-americana acabaria por ser vertido na composição da Misa Criolla – ainda que o impulso para a sua composição tenha nascido quando de uma estadia de Ramírez num convento em Würzburg, na Alemanha, nos anos 50. A Misa Criolla teve a inovação de ser cantada em espanhol – até ao Concílio Vaticano II (1962-65), era imposto que a missa fosse celebrada em latim, mas a partir de 1963, foi autorizado o uso das línguas de cada país. A Misa Criolla não se limita a adoptar o espanhol como língua e os ritmos e melodias da música popular sul-americana como base – também emprega instrumentos populares, como o charango, a guitarra criolla, o acordeão e percussões tradicionais. O próprio Ramírez dirigiu a primeira gravação da obra, realizada logo no ano da estreia.

[Gloria, por Los Fronterizos e o Coro da Catedral de San Isidro (Buenos Aires), com direcção de Gustavo Felice]

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Desde Mozart até aos nossos dias, o concerto para piano é um dos géneros mais apreciados, ao equilibrar a imponência e colorido orquestral com o brilho e virtuosismo do solista, e muitos foram os compositores que nele investiram a sua melhor inspiração.

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