Em Roma, a Igreja Católica e Apostólica Romana zelava para que se cumprissem escrupulosamente os preceitos estipulados para os ofícios religiosos e para a música que os acompanhava, mas no Novo Mundo dos séculos XVI e XVII cada igreja e catedral fazia como lhe aprazia.
Foi assim que os compositores de música sacra do Novo Mundo – uns nascidos na Ibéria e outros do lado de lá do Atlântico – a par da composição de obras ao estilo polifónico romano, foram desenvolvendo um registo muito próprio, em que a tradição erudita europeia se fundia com as músicas populares americanas e, por vezes, também com as dos escravos africanos. Um dos géneros musicais mais populares nas igrejas da América Central e do Sul foi o villancico, nascido na Península Ibérica e frequentemente de temática natalícia (colocando ênfase nos pastores e na adoração de Jesus). Se na sua origem o villancico já tinha marcas de danças e músicas populares, no Novo Mundo ganhou ainda mais liberdade e deu origem à negrilla (ou negro ou guineo), um género de villancico que punha personagens africanas a falar em crioulo e tinha, por vezes, influências rítmicas africanas. Também surgiram, embora com menor frequência, villancicos cantados em linguagens ameríndias ou num crioulo hispano-índio. Também o instrumentário empregue na execução destas música era “mestiço”, combinando violinos, violas da gamba, sacabuxas, charamelas, baixões (um antepassado do fagote), cravos e órgãos com instrumentos tradicionais ameríndios e africanos.
Esta fusão produziu música de ritmos vivos e irresistíveis, que estava muito longe do decoro e solenidade que a Santa Sé considerava adequados aos ofícios religiosos – mas quem se importava com isso no tempo em que uma carta levava alguns meses para ir de Roma a Puebla?
Lisboa, cidade crioula
Fundação Gulbenkian, quinta-feira 02, 21.00 e sexta-feira 03, 19.00, 15-30€.