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Valete
©Vera Marmelo

Valete: “Desgastei-me com a polémica mas aprendi”

O rapper sobe ao palco do Capitólio este fim-de-semana e na próxima quarta-feira. Em entrevista, diz que a controvérsia à volta de “BFF” foi “ridícula”.

Escrito por
Tiago Neto
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A música de Keidje Torres Lima nunca se baixou. Indiferentes à ronda, ao adversário, ou à proximidade das cordas, as suas rimas sempre lhe valeram, fosse no bairro, ou no conflito com o racismo e a desigualdade. Das janelas de Benfica, Odivelas, Amora ou Damaia, os locais em que viveu, escrevia uma realidade que havia de transpirar para dois discos, Educação Visual (2002) e Serviço Público (2006). Os pares reconheceram-lhe a fome e a força, o público empurrou-o com devoção para a dianteira, cobrando-lhe a eloquência como característica ora valiosa, ora ostracizante. Valete, como nos habituámos a conhecê-lo, tornou-se um peso pesado, o único capaz de se abrandar a si mesmo mas, paralelamente, em aceleração contínua até aos seus próprios limites. Com três novos singles, Em Movimento, o novo disco, anunciado e três datas no Capitólio, duas das quais esgotadas, o rapper está de regresso ao serviço. Fomos saber com que força e o que esperar.

Afinal, quando é que vai ser lançado o Em Movimento?
É lixado porque quero fazer alguns clips dessas obras [temas] e isso é o que demora mais. Vou fazer clips para 60, 70%. No estúdio, a coisa está a um ritmo fixe e consigo prever bem os tempos.

Quantas faixas é que vamos ouvir?
Quando fazes um disco segues um guião e é suposto teres coerência. Neste caso, a ideia é estar em estúdio a fazer o que me apetece e o que eu sentir que vale a pena pôr cá fora, ponho. Tenho sons cantados, sem rap, estou a gostar de fazer isso. Já tinha feito uma coisa ou outra mas agora tenho a ajuda do Dino [D’Santiago] na produção.

Como é que a entrada de outras pessoas na produção te influenciou?
Havia muitas competências que não tinha. Fui adquirindo mas, nesta altura, tenho ajuda do Dino, do SP Deville e do Here’s Johnny. Isso tem-me ajudado imenso porque eles são três dos melhores produtores em Portugal e estão a conseguir trabalhar comigo sem querer mudar a minha estética.

Porquê a mudança de nome do disco?
Em Movimento faz sentido por não haver regras, não ser de construção rígida. O título que tinha era Homo Líbero, a apresentação do homem emancipado, do homem novo. A certa altura percebi que era uma cena super pretensiosa. Quem sou eu para estar aqui a descrever o novo homem? Se quisesse fazer uma coisa com esse título e com a profundidade que o título merece, não tinha capacidade. Desisti.

Estavas em altas?
Sim. Tu és mais novo, és um rapper novo. Eu evito dizer que somos poetas porque o poeta é um gajo que nunca recusa expor vulnerabilidade. O rapper, não. Tem dificuldade em expor vulnerabilidade. Passei a fase de achar que sou maior do que realmente sou, que sei muito e que sou fodido.

Quando é que tiveste essa consciência?
Vais ficando mais velho e vais pensando de outra forma. Fui ouvindo nomes que estão a fazer a real transição entre rapper e poeta, e aí percebes: o mais importante é projectar o que realmente és.

Na letra da “Colete Amarelo” falas da comparação que fazem entre ti e o Estraca.
Acho que quando as pessoas dizem isso é um elogio aos dois.

Nunca te passou pela cabeça que ao arranjar um “novo Valete” te estão a substituir?
Pode ser, em parte, e acho isso fixe para nós, para o pessoal da minha geração. Enquanto artista, tens que sentir que vem aí uma nova geração que te coloca novos desafios, para não te acomodares. A ideia de que te podes tornar irrelevante é importante. Acredito na meritocracia quando falamos de reconhecimento artístico. Se fizeres obras impactantes, tens sempre o teu espaço. Não queiras viver com as tuas medalhas, estão lá atrás.

A nova escola está a fazer as coisas pela razão certa? É um produto que vai perdurar?
É muito mais difícil ser artista agora no sentido em que eles têm a ditadura das visualizações. Tenho miúdos na minha zona que desistiram de fazer rap precocemente porque estiveram a criar e acharam que não tinham visualizações suficientes. Eu sou de uma era em que isso não existia. Eles estão nesta era. E creio que é difícil criar sem pensar nisso.

O que acontecia se criassem sem essa pressão?
A arte deles não sofria tanto. O rap é o género musical que mais se preocupa com isso e, por essa razão, é o género musical que mais lixo produz para o mainstream. Não tenho dúvida disso.

Sendo tu da velha guarda, sentes-te de alguma forma responsável por educar quem chegou depois?
Cabe-me, e ao pessoal da minha geração, partilhar as nossas experiências e ensinamentos. Muito daquilo que eles estão a viver nós já vivemos. Tens duas referências em Portugal que sabem tudo da indústria musical, tudo de carreiras, e que se eu fosse da nova escola tentava sempre contactá-las: o Carlão e o Boss AC. E o pessoal não os está a procurar assim tanto.

Concordas que se perdeu qualidade na escrita em função da urgência de produzir conteúdo?
É a tal ditadura da visualização. E com isso houve uma aproximação do rap ao pop, e a estética pop, funcional, é muito de beat e refrão, é um clique. Dá-me aquela coisa que a rádio possa tocar. Não os condeno porque se tivesse a idade deles, provavelmente, fazia o mesmo.

O storytelling é omnipresente no teu trabalho. Casos de “Serial Killer”, “Roleta Russa”, “Mulheres da Minha Vida” ou “BFF”. No entanto, com esta última, houve alguma polémica.
Não estava à espera. Mas o que me incomodou mais foi que, quando saiu o tema, houve uma jornalista [Fernanda Câncio, do Diário de Notícias] que me convida para uma entrevista e no final a minha primeira declaração pública foi: ‘Na “BFF” estou a contar uma história que aconteceu com amigos’. Tenho um amigo que está preso por violência doméstica, 90% da história aconteceu. Até tentei amenizá-la fazendo daquilo um pesadelo, e esse pesadelo é uma história real que aconteceu muito perto de mim. A partir daqui, acho que não podes criar uma intifada de contestação em relação à obra. Porque o artista está a narrar uma coisa que viu. Ponto. Foi mais isso que me incomodou. O resto consigo perceber. Ou seja, a pessoa que me entrevistou, feminista renomada, recebeu essa declaração minha, a dizer que é uma história verídica, ignorou essa declaração, não a publicou e criou uma intifada contra mim.

Alterou a percepção que tinhas do teu público?
Não. O meu público conhece-me bem, não ficou muito surpreendido ao ponto de dizer "nunca vi o Valete fazer uma coisa assim". O que aconteceu foi que provavelmente, pela primeira vez, a minha música pode ter a capacidade de chegar a outros públicos. Mas tem que ver com a internet e com o facto de ser o estilo musical mais ouvido. São novos tempos.

Criativamente, em que ponto é que estás?
É a melhor fase da minha vida. Número um: acumulas experiência, passas a saber executar coisas que antes não conseguias. Número dois: estou a trabalhar com o Dino, com o SP e com o Johnny e eles vão sempre garantir que, pelo menos ao nível musical, as coisas vão ficar competentes. Número três: é a fase da minha vida em que estou mais liberto de preconceitos.

Estás com três datas no Capitólio. Porque é que não te mudas para o Coliseu?
Hei de fazer o Coliseu mas queria reservá-lo para uma coisa especial. Acho que o Capitólio é a sala ideal. Tem um feeling mais hip-hop, mais cru.

O que é que te falta fazer?
Dois discos, mais dois. Hoje, tenho isto claro. Depois disso, não teria muito mais a realizar na música. Sei como é que os quero fazer. Está tudo claro na minha cabeça. 

Pesa-te a ideia de ficares anos a lançar uma ou outra música sem construir um disco? Sentes que perdeste o comboio?
É um problema português. Aqui é fodido. Poucos conseguem dizer que vão parar um ou dois anos com o dinheiro que fizeram na estrada. Então, o músico em Portugal está sempre na estrada. E, quando és realmente um artista preocupado com a tua obra, a obra é mais demorada. Hoje tens que te auto-financiar. O primeiro gajo que vi fazer isso foi o Slow J. Fiquei parvo. Mas essa questão da falta de regularidade discográfica não é só minha, é de muita gente. 

Como é que isso te fez sentir, ver que os teus pares continuavam a produzir, e nomes novos a aparecer?
Fez-me bem. Temos a sorte de estar num mercado que não gera muito talento, ou que não põe muito talento na praça. O Sam, o Regula, lançando um disco hoje, toda a gente vai ouvir, não perdem relevância, isso é do caralho. Eu cresci como letrista, então havia toda uma cena de música que não tinha e agora sinto-me mais capacitado para fazer um disco.

Mas o público não sabe disso.
Não sabe, é verdade, mas há coisas que são do público e coisas que são tuas. Também não podes ser escravo do público. Se eu tivesse lançado discos esta época, não estariam à altura do rap tuga.

Qual é o teu legado no hip-hop?
Quero mostrar um lado mais musical que as pessoas nunca viram. Sinto-me bué capacitado musicalmente, estou muito confiante. Venho de uma geração de rappers letristas, de pessoal que se preocupava com a língua, com a rima. Esse é o meu legado, até porque fui dos poucos que continuei. Será trágico para o rap quando se anunciar a morte do liricismo. O rap morre também.

Vai acontecer?
Acho que sim. Eu sigo a temperatura do rap em vários países e já aconteceu.

É importante veres em que mãos fica o hip-hop?
Das coisas mais importantes. Ficaria muito desiludido se saísse daqui sem perceber que há sete, oito gajos com muito talento a representar isto bem, a escrever bem. Esta cena da substituição não me incomoda, até me agrada. "Saíste, mas foda-se, está ali um puto do caralho."

Há alguém na nova escola com essas credenciais?
Não, pela razão que te disse. Eles vivem super pressionados pelas visualizações e Portugal não tem circuito intermédio, ou seja, para fazeres uma carreira profissional, tens de estar no mainstream. Daí os meus parabéns ao Slow J. Sente-se que ele está a fazer a cena dele, a arriscar.

Ainda sobre a “BFF”, o que é que aconteceu com as mensagens?
As mensagens são falsas. A primeira pessoa que vi a partilhar essas mensagens foi o Mário Machado. As da Fernanda Câncio são verdade mas têm um contexto. E a cena fodida foi ela ter feito um texto a falar dessas mensagens quando eu já tinha dito que eram falsas. Isso viola todos os códigos jornalísticos. Desgastei-me um bocado com essa polémica mas aprendi.

Há mais olhos sobre ti. Isso preocupa-te?
Não, aliás, até é bom. Às vezes a dificuldade que tens na música é a de estares a criar obras e as pessoas não tomarem atenção. Só preciso que as pessoas ouçam uma vez e isso está a acontecer. Sou um rapper politicamente incorrecto mas tenho um sentido de humanidade, de cidadania, de nação e de negritude bastante apurado. Represento um rap progressista, consciente. Tenho noção disso. Tenho noção de que o meu rap está alinhado com a igualdade de género, igualdade racial. Estou tranquilo a esse nível.

Houve alguma reacção inesperada dos teus pares?
Eu sempre fui fazendo a minha cena, com a “Serial Killer”, com a “Roleta Russa”, portanto quem me ouve sabe que as reacções foram desproporcionais. E para quem consome hip-hop com assiduidade foi ridículo. Mas faz parte.

Mais hip-hop

  • Música

ProfJam é um dos maiores nomes do trap português. Aliás, do hip-hop português. A sua música (e a da sua editora, a Think Music) vai ao encontro do actual momento pop global e tem feito mossa online e offline com o primeiro álbum, #FFFFFF.

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