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A felicidade, todos nós queremos

Cristina Carvalhal e João Henriques preparam-se para estrear a peça-concerto ‘Da Felicidade’ no São Luiz, a 5 de Julho. Através de histórias e canções, lançam um debate complexo que põe a alegria no centro, não só do indivíduo, mas do colectivo.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Director-adjunto, Time Out Portugal
Da Felicidade
Estelle Valente/São Luiz
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Hiperbórea era uma espécie de Utopia, mas milénios antes de Thomas Moore se pôr com ideias sobre como organizar uma sociedade perfeita. A mitologia grega apresentava-o como um lugar inteiramente feliz, que os deuses usariam como estância de férias durante o Inverno, e os seus habitantes, os hiperbóreos, representados como gansos. Vem isto a propósito do Jogo do Ganso, de encarar a vida como um jogo (como ensinava Heraclito), de civilizações avançadas e, no fundo, de felicidade. “Diz se é perigoso a gente ser feliz”, entoam em uníssono Bruno Huca, Júlia Valente e Sílvia Filipe, os actores que em palco nos vão debitando histórias, fragmentos de conhecimento e canções de Chico Buarque (como esta), Sérgio Godinho, Helder Rei do Kuduro, Benjamin Clementine ou Queen. São eles que nos falam sobre Hiperbórea e sobre o jogo em que “todos os desvios são bem-vindos”, “chamado Jogo do Ganso ou da Glória, mas que poderia chamar-se Da Felicidade”.

Da Felicidade é – isso, sim – o título da peça-concerto que se estreia a 5 de Julho, quarta-feira, no São Luiz, onde fica até 16 de Julho na Sala Mário Viegas. É uma criação conjunta de Cristina Carvalhal e de João Henriques, com direcção musical do pianista argentino Ariel Rodriguez, que integra o elenco, tal como o clarinetista José de Geus e a contrabaixista Sofia Queiroz, que acompanham o trio de actores em palco. A ideia, conta-nos Cristina Carvalhal, foi mesmo usar o formato de um concerto, que depois “extravasa um bocadinho para a cena”, e construir dessa maneira “um recital à volta da felicidade, ou da alegria”. As canções vão dialogando umas com as outras e com o texto, fazendo a narrativa avançar num labirinto que permite a cada espectador fazer o seu percurso – os seus desvios, digamos – “ligando pontas que ficaram relacionáveis”.

A vontade de fazer este espectáculo partiu de Cristina Carvalhal. “Surgiu na altura da pandemia, de uma necessidade grande de alegria e celebrar e estarmos juntos. Surgiu também de um outro espectáculo, Elizabeth Costello [2017], em que a certa altura havia um momento musical e aquilo foi uma emoção tão grande que pensei: aqui está qualquer coisa que podia ser desenvolvida”, diz. “E depois havia uma vontade antiga de trabalhar com o João Henriques. Já nos tínhamos cruzado ali pelo [Teatro Nacional] São João e num outro projecto mais recente. Tinha esta vontade de trabalhar com ele e fazermos uma coisa à roda da música. O João tem formação musical, mas tem também uma formação muito completa em voz falada e canto. E é sempre muito bom trabalhar com ele porque também tem uma qualidade dramatúrgica muito grande. Então não fica só a música pela música. É uma coisa muito dirigida, muito focada num ponto de vista dramatúrgico.”

Da Felicidade
Estelle Valente/São LuizJúlia Valente, Bruno Huca e Sílvia Filipe

A pesquisa levou-os a Heraclito, Séneca, Espinoza, Alain, Agamben, Walter Benjamin, John Berger, Clarice Lispector, Sylvia Plath, Fernando Pessoa, Nelson Mandela, Ana Luísa Amaral ou a Maria Filomena Molder, filósofa que convidaram para escrever a folha de sala e que acabou por se interessar pelo projecto e ser uma agente participativa na sua construção. “Conversou imenso connosco e mandou-nos material dela, escrito, que também foram pistas importantes para irmos descobrir outras coisas”, conta Cristina Carvalhal. “Foi um processo muito colaborativo.” Com o resto da equipa também. “Isto acabou por ser uma coisa muito colectiva. Queríamos que houvesse materiais de várias origens, que não fossem só de origem filosófica, mas que tivessem também algumas histórias concretas. Porque, às vezes, um tema complexo é mais fácil de concretizar através de histórias.”

Estamos perante um exercício de pensamento que tem lugar em palco, e não um produto encenado na indústria da felicidade, é importante sublinhar. Primeiro, a alegria é indissociável de outros estados menos radiantes. “Há uma história que se conta [na peça], que aliás é um material que vem da Clarice Lispector, que fomos buscar e é vertido por nós, em palavras nossas, sobre como a alegria é também um momento de temor, de susto, de apreensão”, nota Cristina Carvalhal. “Há um lado aqui da alegria que tem a ver com contracção e expansão. Todo o outro lado está sempre presente, não é? Há uma dialéctica entre alta energia e baixa energia, não podemos viver sempre em alta.” Na peça, veremos uma dessas “contracções” quando Sílvia Filipe canta a ária “Lamento de Dido”, de Purcell. Ou ouviremos falar da angústia de estar vivo e da morte recorrendo ao diário de Sylvia Plath. Com o diário de Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras escritoras negras do Brasil, que vivia numa favela, chegaremos aos livros como “fonte de alegria”. Cristina Carvalhal diz, de resto, que além de nos ligar uns aos outros e ao mundo, contar histórias é uma “necessidade” que “nos devolve alegria”, que “aumenta a nossa potência de agir”.

Agir em que sentido? No de uma felicidade mais abrangente. No sentido de Hiperbórea. “A felicidade permite-nos falar de uma outra dimensão que nos interessa, a dimensão sócio-política e económica. Não pode ser pensada unicamente na esfera individual, tem que ver com condições mais macro”, afirma Cristina Carvalhal. “Hoje, há muito esta coisa da indústria da felicidade, que nos quer vender receitas para sermos felizes. Nós queríamos falar da alegria, mas a felicidade permite abrir para essa outra coisa mais interventiva, mais política, que tem a ver com imaginarmos uma sociedade mais perfeita. No fundo, que haja mais equidade, justiça, liberdade.” Isto é, felicidade para todos.

São Luiz Teatro Municipal (Sala Mário Viegas). 5-16 Jul. Qua-Sáb 19.30, Dom 16.00. 0-12€

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